Crónicas

O rosto e as máscaras

Após a objetivação total dos corpos — o “outro” reduzido a complexa estrutura bioquímica em movimento, elo indiferenciado da cadeia de produção ou da logística do prazer — chegou o tempo das máscaras: não (se) expor, não tocar, não contaminar. Na exterioridade física, distantes; no acesso à interioridade (psicológica ou afetiva), o bloqueio das máscaras. Sem o rosto que se ex-põe no diálogo do face a face, que caminho para a empatia da solidariedade? Na sociedade igualitária das máscaras e sob governança dos algoritmos, só fica tempo para a vida como teatro de autómatos, cada vez mais polarizados pelas tecnologias do “homo digitalis”.

Ao ler, há dias, um artigo da Prof.ª Helena Lopes, catedrática de economia do trabalho, achei muito pertinente a sua análise do “narcisismo de massa” decorrente da globalização dos processos digitais, a partir desta questão do rosto e das máscaras. Para o que, curiosamente, citava Emmanuel Levinas: “Le visage de l’autre m’interpelle”.

De facto, para este judeu lituano escapado a um campo nazi, que haveria de desenvolver toda uma filosofia do sujeito, do rosto e da intersubjetividade, é o encontro face a face que instaura o outro como lugar ético. Daí, a sua original expressão de “nudez” ou “epifania do rosto”: só o rosto do outro no seu puro aparecer, diz (sem máscara nem artifício) o “humanum” essencial. O rosto nu posiciona e expõe: ele é o que não se pode “vestir”. No encontro de dois olhares que mutuamente se fitam face ao apelo nu do rosto, joga-se o humano primordial em toda a sua radicalidade. Viver é, portanto, responder ao outro que é outrem (“este” e não “isso”), habitando a existência em finitude e, da sua fragilidade nua, brota um apelo a que não se pode escapar. Pelo que... não há solidariedade sem empatia: só o olhar que, na face ex-posta, toca a interioridade do outro, pode suscitar a decisão do acolhimento e da res-ponsabilidade. Ou seja: o homem pertence à ética, e não (apenas) à natureza.

O tempo das máscaras é também o da insensibilidade. Os laços que nos prendem aos outros e à natureza passam pelo corpo: habitamos o mundo como seres de presença encarnada. Mas a pandemia, ao instalar na comunidade humana novos perigos e constrangimentos, veio rasurar ainda mais a proximidade inerente ao encontro, à cooperação e à solidariedade. Neste contexto, o digital acelera o distanciamento e a fragmentação: há os que “trabalham com o corpo”, essenciais mas pouco remunerados, que fazem a com-unidade funcionar: pouca digitalização, baixa produtividade; mas, os que podem confinar em teletrabalho têm acesso à im-unidade: distanciamento digital, remuneração progressiva. Ora, com os inúmeros benefícios das tecnologias digitais, diríamos que o assunto é demasiado sério para ficar (só) na mão das plataformas: a in-visibilidade e in-tocabilidade dos trabalhadores que fazem funcionar o sistema, acentua as clivagens sociais e des-responsabiliza os verdadeiros “donos disto tudo” nos seus lucros bilionários. Mas os Estados não podem ignorar as suas funções de regulação e de solidariedade: indivíduos des-ligados, virados só para si no face a face com os écrans (sem o outro da res-ponsabilidade), acabam cada vez mais à mercê do novo “capitalismo digital” dos poderes sem rosto. Aí, com máscara ou sem ela, na sociedade onde vigora um amplo “narcisismo de massa”, seremos — cada vez mais sem rosto — apenas números aleatórios do sistema.