Irónica como Eça, daí ser chamada “Eça de Queiroz de saias”, escritora com a capacidade de se renovar através das formas, de reelaborar as propostas expressivas da arte das vanguardas, Luísa/Luzia questiona as mudanças sociais e culturais de uma época em que os artistas procuravam com novas propostas encontrar uma ordem na desordem. Sentindo-se incapaz de proferir verdades absolutas, como escritora alude, representa, esboça, diz o destino humano na sua desagregação, no seu incómodo, na sua angústia. No coração, a Madeira e, em especial, o mar e as gentes do Jardim do Mar, o seu porto de abrigo.
Luísa Susana Grande de Freitas Lomelino, que assinou os seus livros como Luzia, nasceu a 15 de Fevereiro de 1875, em Portalegre. Filha de Eduardo Dias Grande, que ocupou o cargo de secretário-geral do Governo Civil do Distrito do Funchal, bisneto do Dr. Francisco Grande e Metelo, e de Luísa de Freitas Lomelino, uma senhora da alta sociedade madeirense, filha do morgado da Quinta das Cruzes, Nuno de Freitas Lomelino e D. Ana Welsh de Freitas Lomelino, Luísa ficou órfã de mãe no momento do seu nascimento, com a morte da progenitora durante o parto. Segunda filha do casal, nascida 8 anos depois da irmã, Ana Luísa, natural na freguesia de S. Pedro, no Funchal, Luísa tem como padrinhos de batismo dois tios paternos, o general José Maria Grande e D. Sofia Cândida Dias Grande. É esta tia, sua madrinha, que a acompanhará durante grande parte da sua infância e que recordará ao longo da vida com grande carinho.
Com apenas seis meses, o pai, que sofria de uma grave doença pulmonar, muda-se para a Madeira com as duas filhas. Foram viver para a Quinta das Cruzes, propriedade dos avós maternos de Luísa, onde a menina ficou até aos nove anos, quando o pai, que sofria de tuberculose, acaba por falecer. Recebida em casa da madrinha Sofia, ficará em Portalegre até ingressar no Colégio das Salésias para poder continuar os seus estudos. Atingida a maioridade, Luísa é recebida em casa dos viscondes Geraz de Lima, em Lisboa. É com o casal que volta à Madeira, indo residir com a avó na Rua dos Netos, n.º 19.
A 4 de abril de 1896, casa com Francisco João de Vasconcelos. Após os primeiros tempos na Quinta das Cruzes, os noivos rumam ao Jardim do Mar e passam a residir no Solar de Nossa Senhora da Piedade. Apesar das esperanças que Luísa coloca no casamento, este não foi feliz e divorcia-se pouco tempo depois da lei do divórcio ser aprovada (3 de novembro de 1910). A 19 de Novembro de 1911, escreve no seu Diário: “Seulette, seulette, sans compagnon ni maître… E agora, julgo que para sempre. Mas não me sinto feliz… Ai de mim! Ai de todos nós! Passamos a vida a dizer: se não fosse isto, se tivéssemos aquilo…”. Em janeiro de 1912, regressa à Madeira, pela qual confessa sentir uma forte atração, não conseguindo estar longe, apesar de ser avisada de que poderá não ser bem recebida dado o novo estado civil. Pelo contrário, escreve no seu diário: “Todos me acolhem. Todos me sorriem. De todas as mais elegantes casas, chegam convites… A vida estende-me aos pés o seu mais macio tapete. E queriam convencer-me a não vir, a ter medo!…”
Luísa tem vários problemas de saúde que a vão afligir ao longo da vida e que a levarão diversas vezes a passar largas temporadas num sanatório em Pau, França, onde recupera forças. A neurastenia, a solidão, o receio da desilusão levaram muitas vezes a autora a um sentimento de desistência e de desejo da morte. No entanto, era conhecida também por ser a alma das festas e dos convívios, nos quais genuinamente se divertia a conversar e a observar com olhar irónico a sociedade que será a protagonista principal dos seus livros. Amante das viagens, dá-se com pessoas de várias nacionalidades e cultiva amizades no campo das artes e das letras.
O ambiente intelectual em que se movimentava em Lisboa incluía as amigas Laura Veridiana de Castro, Maria Amália Vaz de Carvalho, Fernanda de Castro, Teresa Leitão de Barros, autores como Alberto Jardim (pai de Ricardo Jardim). O mundo das letras acolhe, aliás, o seu primeiro livro com naturalidade, já que todos pareciam esperar o exórdio literário de Luísa. Manterá ao longo da vida ampla correspondência com Laura Veridiana e Fernanda de Castro que permitem ao leitor de hoje uma imagem nítida das suas posições literárias e ideológicas, mas também da sua vida, marcada pelo profundo sentido de solidão, apesar das constantes viagens e dos compromissos sociais, e de consciência de um mundo que pouca importância dá aos verdadeiros valores.
Na Madeira, procura o ambiente calmo do Monte, dos hotéis de charme, alternando temporadas no centro do Funchal e nas zonas altas. Instalou-se na Quinta Nogueira, logo adiante da Ponte Monumental, onde, testemunha Feliciano Soares, marido de Laura Veridiana e jornalista, “com os seus quadros, as estantes dos seus livros ricamente encadernados, as suas flores sempre renovadas, fez um petit chateau de France». Mudou-se depois para a Quinta Carlos Alberto, na Rua do Jasmineiro, número 3. A saúde começou a deteriorar-se cada vez mais e além de problemas dos olhos, que quase lhe provocaram a cegueira, também sofria de problemas respiratórios, que lhe causavam grande fadiga e impossibilidade de fazer esforços físicos. Os amigos nunca a deixaram e, alarmados, procuraram sempre que tivesse os melhores confortos. Acaba por falecer a 10 de dezembro de 1945, na Quinta Carlos Alberto.
Ser escritora esteve sempre no horizonte de Luísa: o seu primeiro conto é publicado a 8 de Janeiro de 1894, no Correio da Manhã ( “A lenda das estrelas” in Correio da Manhã, 08.01.1894), tendo também colaborado na imprensa da Madeira, com o pseudónimo de Lady Butterfly.
O lançamento do primeiro livro de Luísa/ Luzia, Os que se Divertem, A Comédia da Vida, aconteceu quando a escritora tinha já quarenta e cinco anos, em 1920. O sucesso foi enorme e imediato e a obra conheceu três edições, a primeira em 1920, a segunda em que não aparece data de publicação e a terceira edição em 1929, esta última uma edição aumentada e com ilustrações de Bernardo Marques. Rindo e Chorando é publicado dois anos depois, em 1922. A veia irónica de Luzia no retrato que faz de uma sociedade de aparências valeu-lhe a comparação com Eça de Queiroz, sendo mesmo conhecida pela “Eça de Queiroz de saias”.
Seguem-se as publicações de Cartas do campo e da cidade, em 1923, Cartas d’uma vagabunda, Sobre a vida…sobre a morte, máximas e reflexões, em 1931, Almas e terras onde eu passei, publicado em 1936, Última Rosa de Verão (cartas de mulheres), em 1940, romance epistolar que conta a história de Ana Guiomar, que é incumbida de “educar” o primo da sua amiga Maria do Carmo, que vai uns tempos para fora. O primo de Maria do Carmo, Nuno, tem metade da idade de Ana Guiomar, e com a convivência ambos se apaixonam.
Quatro anos antes da sua morte, em 1941, Luzia lança Lições da Vida, Impressões e Comentários. A escritora, que apesar de estar quase cega e muito doente, nunca parou de escrever, deixou prontos para publicação Dias que já lá vão, com prefácio de Fernanda de Castro e Teresa Leitão, que foi publicado um ano depois da morte de Luzia, em 1946, e o seu diário Pelos Caminhos da vida, Jornal, que esteve desaparecido por muito tempo, mas que foi localizado pela investigadora do CLEPUL Cláudia Sofia Neves, assim como foram encontradas os manuscritos em que se baseou para a sua composição. Encontra-se já em fase de revisão para publicação e, certamente, será extremamente importante para a compreensão da personalidade da autora, cumprindo, aliás, a última vontade da escritora.
Luzia andava lado a lado com os nomes que hoje reconhecemos como relevantes para a história da literatura portuguesa, sendo unanimemente considerada uma mulher de letras talentosa, admirada por todos, e deixou uma produção extremamente original e moderna, que contém em si as grandes correntes da literatura ocidental da época. Num momento em que muitas mulheres escreviam, mas dedicando-se na maior parte das vezes à pedagogia, à literatura infantil, ou tentando imitar o estilo de escrita masculino, Luzia assume uma voz feminina, seguindo escritoras como Virgina Woolf , Dorothy Richardson e Anne de Noialles, a Condessa de Noialles. A predileção por esta última, que seguia também as preferências de Proust, Valéry, Barrés e Jean Rostand, demonstra bem a modernidade de Luzia e a sua filiação nas grandes tendências literárias das primeiras décadas do século XX.
A autora inscreve-se também numa outra das facetas da modernidade: a crítica à nova burguesia e à aristocracia da época. Se o neorrealismo se focará, mais tarde, na periferia social, na pobreza, na oposição entre a realidade camponesa e operária, na problemática das zonas isoladas, dos arredores dos centros urbanos, autores como Alberto Moravia, com Os Indiferentes, retratam a alta sociedade que vive alheada do mundo que se desmorona e se perde no luxo e nas festas. Também Luzia revela personagens e situações em que impera o alienamento em relação ao mundo, fazendo uma forte crítica social.
A Madeira enche os seus livros como sujeito com a sua terra e gentes. Paisagem física e sonhada, é nela que a escritora se encontra e radica. Ao Jardim do Mar, onde foi simultaneamente tão infeliz e feliz, reserva descrições que o tornam vivo, retratando o lugar e as gentes com uma emoção e nostalgia transbordantes. A ele, à procura da autora, se deslocará muitos anos depois Maria Lamas, que se fez retratar a escrever na mesa que se pensava ter sido usada por Luzia no Solar da Nossa Senhora da Piedade.
Mesmo depois da sua morte, Luzia continuou a ser referenciada e elogiada, existindo um consenso comum, entre as personalidades da época, em considerar Luzia como uma das maiores escritoras portuguesas. Das descrições do meio ambiente e social da Madeira, ao relato sobre o meio social português de início do século XX, passando pela descrição de momentos históricos nacionais e mundiais de extrema importância, Luzia foi testemunha do seu tempo, de forma crítica e bem-humorada, retratando o mundo que a rodeava.