Vida nas traseiras
Quando recebeu o óscar de melhor atriz, Frances McDormand pediu que toda a gente fosse ver o filme no “maior écran possível”... Felizmente que se tornou viável aceder ao seu pedido — e voltar à fruição do cinema em estado puro, na magia da sala escura!
NOMADLAND é um filme quase solitário no contexto da produção americana: nada de mitologias do entretenimento, nada de choradinhos ou idiotices cómicas para entreter as turbas dos “megastores”. Nomadland parte de um ensaio sobre o fenómeno do nomadismo em cenários do pós-capitalismo e à volta das grandes urbes, após a devastação (no trabalho e no emprego) decorrente do colapso de 2008, com um tsunami económico-social a afogar as classes médias e que viria a estender pesadas sequelas até aos nossos dias. Por isso, o filme leva em português o subtítulo “Sobreviver na América” e é visto por críticos como um bom exemplo de “docuficção”: não é nenhuma obra-prima, nem isso interessa, mas é um filme tocante pela sua beleza austera e capacidade de encenar vidas desamparadas e cruzar histórias dos deserdados do sistema que, apesar de tudo, lutam por uma saída para não sucumbirem ao fim previsto. É dessa tenacidade que se faz a figura de Fern, trabalhadora num gigantesco armazém da Amazon que, encerrando, fez “descontinuar” a vida de milhares de empregados, já demasiado “grisalhos” para serem recuperados... Viúva e só, Fern avança então para a vida nómada, atravessando planícies e desertos num velho furgão adaptado que é, agora, a “casa” possível, juntando-se a outros nómadas em acampamentos “tribais” povoados de desalojados do emprego, da família, da vida certa de outrora, nómadas que fazem dessa sobrevivência um modo de vida, trabalhando à jorna ou em biscates aqui e ali, em deambulação solitária pelas enormes periferias nevadas ou desérticas — eis o que confere à história deste filme uma verdade-denúncia que não dá para suavizar.
Mas, Nomadland não seria o mesmo filme sem aquela atriz: é um prazer ver FracesMc Dormand “a fazer” de Frances McDormand, toda uma gama de emoções na secura quase rude daquele rosto e no despojamento completo da “star” que contracena com nómadas reais, que partilham sobras no meio de nenhures, os catos do deserto em fundo ou em grandes planos cheios de espinhos: eis a grande força desta narrativa dos “cancelados” da América, que o trumpismo não conseguiu tornar “great again”! Mas há outras boas razões para ver o filme: uma história, que podia ser só de desespero e falências humanas, pontilhada por gestos de amizade, ternura e esperança, a convivialidade frugal como lugar da sobrevivência possível. E a enorme solidariedade: os que nada têm são os que mais partilham — sonhos, pão e confidências, bocados de vidas únicas arrancadas ao seu “modus” habitual, antes um lugar ao sol na cidade para sempre longínqua. Agora, eles partilham os restos e a resistência: e essa parece ser a sua forma de afugentar a morte!
Nomadland é denúncia, mas também uma enorme lição de humanidade: a capacidade de narrar por imagens a crueza de um sistema que gera injustiça e perda, a infra-vida nas traseiras esquecidas das grandes cidades; mas, forte lição de humanidade porque escolhe iluminar gestos e personagens onde há uma réstia de grandeza e de esperança. Como testemunhava Chloé Zhao, ao receber o óscar da realização: “Sempre encontrei bondade nas pessoas que conheci pelo mundo”, e quer partilhar o momento com aqueles que têm “a fé e a coragem de se agarrarem à bondade dentro de si”.