Crónicas

Esse tempo em que fomos todos iguais

O comunismo ia ganhar e, para garantir um lugar nesse novo mundo, alguns vizinhos fizeram-se assinantes de revistas com foices e martelos

A revolução surpreendeu a minha mãe, o meu pai, as minhas tias e todas as pessoas do Laranjal como, suponho eu, acontece em todas as partes do mundo à maioria. E lá em cima não foi diferente. De um dia para o outro os miúdos começaram a brincar aos partidos e às eleições, a firma de construção civil onde o meu pai trabalhava fechou e, à tarde, quando se sentavam para bordar no quintal, as minhas tias imaginavam um futuro em que teriam de dividir a casa, a fazenda e as galinhas com outras famílias.

O comunismo ia ganhar e, para garantir um lugar nesse novo mundo, alguns vizinhos fizeram-se assinantes de revistas com foices e martelos. Lembro-me de que eram os filhos que iam levantar as encomendas do correio à venda do André e era estranho ver a política misturada com a mercearia onde os leiteiros descansavam as varras e à porta havia sacas de alfarrobas. A venda era um ponto nevrálgico: era onde iam dar as cartas que o carteiro não conseguia entregar, onde tinha um telefone e onde havia rebuçados, chocolates, lápis, cores de pau e folhas para as provas da 4ª classe.

A política apanhou-nos quando todos vivíamos num lugar ainda rural, marcado por desentendimentos de partilhas de terrenos e brigas por causa das horas de água, onde as pessoas se dividiam entre as que tinham terras e as que não tinham, as que tinham muitos filhos e as famílias mais pequenas. As linhas que nos separavam pareciam mínimas naquele Laranjal dos anos 70, que ficava a meia hora de autocarro do centro do Funchal e não contava para a história. Nem o lugar, nem nós que, enquanto rebentavam bombas e se faziam manifestações no Largo do Colégio, seguíamos as nossas vidas.

E, embora não fôssemos todos iguais, fazíamos parte da mesma comunidade e, no caminho, quando se jogava com uma bola de trapos, as diferenças esbatiam-se, seria preciso muita atenção para distinguir os que dormiam num quarto só para si dos que dividiam uma cama com mais três irmãos. E, ao domingo, vestidos com a melhor roupa e bem lavados, a catequista não percebia à primeira quem era quem. De uma certa maneira, éramos todos mais ou menos excluídos e havia nisso uma igualdade, um laço que nos fazia entender os outros, os nossos vizinhos.

Os meus amigos de infância foram eles: a Ana, a Sandra, a Helena Marta, o Paulinho, o Marcelino, o Élvio. Moravam perto, tinham famílias maiores do que a minha e lembro-me de ter entrada franqueada nas casas onde viviam, de ser a Lina Marta para as mães e os irmãos mais velhos. Corremos pela fazenda do meu avô, todos atrás do meu irmão, andámos algumas vezes à porrada. O tempo e as circunstâncias acabaram por determinar os nossos caminhos, mas houve um momento, naquele Laranjal dos anos 70, abalado pela revolução e ainda fiel aos padres e à igreja, em que fomos todos iguais.

A revolução faz anos daqui por uns dias e tenho pensado se seria possível repetir este convívio, agora, com as crianças de agora.