Análise

A nódoa que não cai

O triplo esquecimento de Rui Barreto coloca a Madeira no centro das conversas sobre a arte de fazer política sem dominar todos os contornos de uma aventura de alto risco, que não se compadece de amadorismos, nem de distracções, qual campo minado ou lago de crocodilos.

Não nos cabe julgar a sua honestidade, até porque os dados que comprovam aselhice e descuido não são, para já, comparáveis aos casos mediáticos nacionais nas mãos da Justiça e a caminho de julgamento. Não nos cabe sequer aconselhar qualquer estratégia de defesa até porque está bem servido de assessores e consultores. Não nos cabe explorar a fragilidade humana decorrente deste momento particularmente sensível. Não nos cabe desconfiar da garantia que “não houve intenção de ilicitude”, a exemplo do que afirmou o ex-líder regional do CDS, Ricardo Vieira, no debate da semana da TSF, se bem que, tal como ele, estejamos convictos que as mãos não ficam limpas num processo com consequências nefastas.

Apenas constatamos factos decorrentes do exercício de um cargo político, que por força das circunstâncias lhe garantiu um lugar num governo e na história, o que por si só exige bem mais do que o legítimo desejo de ser poder a qualquer preço, ter benesses para distribuir e palcos para actuar. Aliás, neste capítulo, várias vozes credíveis e com experiência no pântano político têm dito nos últimos dias que quem assume funções públicas deve “tomar muito cuidado com o que faz”, o que entre outros aspectos, não compatível com “alguma falta de conhecimento e até de consciência das suas responsabilidades”.

O líder do CDS na Madeira esqueceu-se de avisar o partido em 2019 que havia dinheiro fresco para a campanha eleitoral depositado em contas pessoais para não haver problemas com quem controla as contas das máquinas de caçar votos. Esqueceu-se de devolver o dinheiro emprestado quando para tal, em 2020, foi convidado a fazê-lo e não só depois de confrontado com as perguntas do jornalista da SIC em 2021. Esqueceu-se de declarar ao Tribunal Constitucional o empréstimo recebido.

E depois do mal feito e mediatizado voltou a esquecer-se de alguns princípios básicos que devem constar dos manuais de instruções para principiantes. Quis parecer bem, com resposta pronta e discurso alegadamente coerente, mas precipitou-se e deixou pontas soltas. Quis resumir o assunto a um conjunto de “imprecisões e falsidades reportadas”, mas ao mesmo tempo admitiu o essencial do que foi noticiado. Quis ser eloquente numa primeira fase, mas quando a gravidade ganhou outras proporções, reclamou o direito de não prestar declarações aos jornalistas cuja missão é perguntar, esclarecer e informar.

Mais importante do que a argumentação usada numa novela com partes gagas e de comprovado efeito negativo na imagem externa da Região é ter a folha limpa. Se Rui Barreto pediu dinheiro emprestado, a título pessoal, mas para ajudar o CDS, o que por si só já levanta dúvidas sobre a legalidade do financiamento, e depois não declarou ao Tribunal Constitucional o que estava obrigado por lei, deve saber que arrisca ser acusado de crime que prevê perda de mandato, demissão ou destituição judicial. Se não sabe, por mais direitos que tenha, era bom que tivesse a consciência que o desnorte tem custos. Aliás, garantiu a pés juntos não ter cometido qualquer crime. Mas pelos vistos prevaricou.

Na mesma ocasião, há uma semana, jurou que o “senhor presidente do Governo é conhecedor de todos os factos”. Miguel Albuquerque, a quem implorou confiança, foi anteontem taxativo com um intrigante: “Não sei de nada”.

Resta aguardar por novos desenvolvimentos num contexto em que se vislumbram incómodos na coligação regional e branqueamentos inusitados. Achar que as omissões constitucionais e ilícitos criminais não merecem reparo público, só porque quase todos os agentes dos poderes instalados têm telhados de vidro, é demitir-se compulsivamente do dever de escrutínio e permitir que os infractores, de forma abusiva e irresponsável, comprometam o bem comum.

Neste 25 Abril em que o enriquecimento ilícito volta a ser tema e em que surgem vontades conjugadas no sentido de legislar aquilo que já foi várias vezes condenado ao fracasso, para assim dar cabo de todas as formas de corrupção, importa acreditar que a luta pela credibilização da classe política não se confunde com injustiças e perseguições, antes um sublime gesto de salvaguarda do que é elementar em democracia.

É por isso que também convém perceber de que estirpe é feita hoje a liberdade conquistada a pulso, processo revolucionário sempre em aberto, sobretudo no espírito daqueles que não se contentam com a nova vaga de desigualdades, ditadas ou não pela crise pandémica, nem toleram as assimetrias forçadas, a falta de oportunidades e as discriminações abusivas.