Crónicas

Vitória histórica dos adeptos de futebol

E se provas fossem precisas de que este é de facto o desporto do povo, transversal a todas as classes e que se alimenta de um sentimento único aí estão elas

O empresário norte-americano Joe Glazer ( presidente e um dos donos do famoso clube inglês Manchester United ) disse há dois anos que demorou cerca de dois anos para aprender a regra do fora de jogo no futebol e que mesmo agora continua-lhe a fazer muita confusão. Esta frase é lapidar e demonstra na perfeição no que se tornou o desporto mais popular do planeta. Na verdade há muito que os clubes se transformaram ( salvo raras excepções ) em sociedades anónimas desportivas que têm como prioridade como em qualquer outra empresa a procura da rentabilização financeira, a satisfação dos seus acionistas e o lucro puro e duro. Deixaram de lado a emoção e a paixão e criaram verdadeiras estruturas empresariais que só toleram os apaixonados adeptos porque são eles que fazem girar os milhões e tornam o negócio atrativo.

A criação da Super Liga Europeia é o reflexo disso mesmo. Sem olhar a rankings, história ou méritos, juntaram-se à mesma mesa os novos ricos do futebol europeu, muitos deles vindos de paragens onde este desporto nem é cabeça de cartaz, sem grande ligação ao espaço mais emotivo do jogo e sem a mais pequena sensibilidade para a ligação de amor entre o fervoroso adepto e o clube do seu coração. Alimentados pela ganância e afogados nos seus próprios egos, arquitetaram um plano que visava o rápido enriquecimento, só que se esqueceram dos intervenientes mais importantes. Os jogadores, os treinadores e os adeptos. E se provas fossem precisas de que este é de facto o desporto do povo, transversal a todas as classes e que se alimenta de um sentimento único aí estão elas.

O sinal dado pelos adeptos dos próprios clubes incluídos nesta suposta elite, que seriam os que teriam a ganhar com a sua inclusão nesta competição traz ao de cima aquilo que é a génese da competição. Da solidariedade ao valor que é dado ao mérito, aos esforço pela glória e às conquistas através da disputa do jogo e que só lhe empresta emoção pela razão de que até o ( hipoteticamente ) mais fraco dos clubes tem oportunidade de concretizar os seus sonhos que se conquistam através da competência. O que este golpe de teatro pretendia, através de uma liga quase fechada e exclusiva para os milionários era quebrar todos os condimentos que fazem deste desporto único. A desculpa de que o sistema reproduzia aquele que é provavelmente o mais bem sucedido negócio do desporto ( o basquetebol americano - NBA ) só demonstra um profundo desconhecimento das diferenças culturais e até estruturais dos dois continentes, quer em termos do que é a representatividade mas também da distinção entre aquilo que é um fã da NBA do que é a cultura histórica e a matriz sociológica do futebol europeu e do adepto religioso que segue o seu clube e o defende de uma forma profunda. Das rivalidades que se construíram através de anos e anos de acérrimas disputas e de muitas memórias e histórias para contar.

Esta não foi uma luta a favor da UEFA nem da FIFA que aliás trazem um lastro de corrupção e jogadas de bastidores que nada abonam a seu favor. Foi antes uma mensagem que também eles devem assimilar. A da paixão pelo jogo. Pelo direito a sonhar, a conseguir chegar “lá”. A vitória histórica não foi da UEFA, foi do jogo em si. Dos treinadores e dos jogadores que tiveram a coragem de se manifestar contra e dos adeptos que saltaram para a rua e demonstraram onde está a mais bela riqueza do futebol. São esses que vivem às vezes até de forma excessiva, os que vibram, que choram e gritam, multidões anónimas que faça chuva ou faça sol seguem os seus clubes para os apoiar mas lhes entregar uma devoção que não se explica, sente-se. São eles com a sua paixão que tornam o negócio tão rentável. É maravilhoso sentir que foram eles que bateram o pé aos mais poderosos e lhes mostraram qual é o sentido do desporto e que sem eles o futebol perde todo encanto. Ficará como mais uma irresistível memória para a história. O dia em que os adeptos saíram à rua. Que sirva de aprendizagem para todos. Fosse assim também noutras matérias da nossa sociedade e talvez estivéssemos por esta altura um pouco melhor…