Crónicas

«Abril de novos ritmos novos rumos» (Manuel Alegre)

A via crucis é também a história de uma mulher que viu o seu filho desaparecer sem que nada pudesse fazer para inverter a realidade

Abril é o mês em que se assinala a importância da prevenção dos maus tratos na infância. Tornar-se-á também, espero, o mês em que finalmente será aprovado o reconhecimento do estatuto de vítima a crianças e jovens que testemunhem ou vivam em contexto de violência doméstica. Este estatuto reconhece inequivocamente que as crianças e jovens que testemunham situações de violência doméstica também são vítimas dessa violência. Em consequência deste reconhecimento, a criança ou jovem terá direito a ser ouvida, numa sala própria, sem ter de ser confrontada com a presença da pessoa agressora. Permitirá também o recolhimento do depoimento para memória futura, evitando que tenha de o repetir múltiplas vezes a diferentes pessoas e, com isso, reviver os episódios de violência. Ainda que exista uma diretiva, datada do final de 2019, com orientações uniformizadoras para este tipo de crime que incluem a audição de crianças em contexto de violência doméstica através do depoimento para memória futura, a verdade é que ainda não tem força de lei, pelo que depende sempre da vontade deliberativa de quem está envolvido no processo. Com a aprovação do reconhecimento do estatuto de vítima às crianças e jovens que vivenciaram contextos de violência doméstica essa arbitrariedade deixará de existir.

Certo é que o reconhecimento deste estatuto vai ao encontro dos compromissos assumidos pelo Estado Português no âmbito da ratificação da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres. A convenção, adotada em Istambul em 2011, foi aprovada pelo Governo Português em 2012, ratificada na Assembleia da República em 2013 e entrou em vigor em 2014. A convenção especifica que os Estados que ratificarem a Convenção se comprometem a tomar medidas que tenham em conta as «necessidades específicas das pessoas tornadas vulneráveis por circunstâncias particulares (…)» (art. 12.º), e que serão tomadas medidas legislativas que «assegurem os direitos e as necessidades das crianças testemunhas de todas as formas de violência (…)» (art. 26.º).

Já em 2019 duas propostas de lei do Bloco de Esquerda e do PAN propunham o reconhecimento deste estatuto, não tendo sido aprovadas na altura. A partir daí, foi a sociedade que se mobilizou para que o reconhecimento desta realidade de muitas crianças fique plasmada na Lei e com isso seja assegurada a uniformidade de procedimentos em todos os casos. Em julho de 2020 deu entrada na Assembleia da República uma petição com quase 50 mil assinaturas e que contou com o trabalho árduo de ativistas e várias associações que trabalham pelo cumprimento dos Direitos das Crianças e dos Direitos Humanos em Portugal. Destaque-se o especial empenho das pessoas que a dinamizaram e entregaram na Assembleia da República, a saber, a ativista Francisca Magalhães de Barros, Manuela Eanes e Dulce Rocha (Instituto de Apoio à Criança), António Garcia Pereira (advogado), Isabel Aguiar Branco (advogada), Rui Pereira (antigo Ministro da Administração Interna) e Nuno Markl (humorista). As propostas do PS e do PSD que vão agora a discussão resultam da ponderação dos grupos parlamentares sobre o teor da petição e procuram responder ao apelo de que a lei deve ser clara relativamente aos procedimentos a ter com crianças e jovens que são vítimas indiretas de violência doméstica. Será durante o mês de abril que a discussão destes importantes documentos acontecerá em plenário: o da petição e as propostas dos grupos parlamentares. Tudo aponta para que finalmente este reconhecimento aconteça.

«Como se ainda o embalasse» (Dante Milano)

Existiu desde que me lembro, no quarto dos meus pais, uma reprodução miniatura da Pietà, a célebre escultura em mármore da autoria de Michelangelo (séc. XVI).

Sempre me impressionou a postura corporal das duas figuras, uma mulher a segurar nos braços um filho morto, uma das mãos ligeiramente levantada e que sempre me pareceu expressar a incredulidade que não lhe lemos no rosto. Esse, o rosto, espelha uma tristeza resignada, pungente. Maria está só, a sós com o seu filho nos braços, e toda a linguagem corporal é suficientemente eloquente para nos deixar na mais completa mudez perante aquela dor solitária.

É sempre de uma dureza lancinante e desesperante perder uma criança que se ama, esteja ela prestes a nascer ou tenha já 33 anos, quando ainda cabe no antebraço ou quando não cabe mais no colo da Mãe. É por isso muito importante que quem acompanha essa Mãe, ou esse Pai, na dor da perda de um filho ou de uma filha não sucumba à tentação de a desvalorizar – e acontece muito, principalmente quando se trata de perda gestacional. Essa tentativa de ajuda apenas deixa as pessoas a gritar para dentro.

A via crucis é também a história de uma mulher que viu o seu filho desaparecer sem que nada pudesse fazer para inverter a realidade. É a solidão de quem embala um corpo amado sem vida, de sussurrar a canção de ninar que não se chegou a ter a oportunidade de cantar ou que se cantou tantas vezes até a criança deixar de o ser.

Conheço Mães – e Pais – que perderam demasiado. Não consigo imaginar o que seja perder um filho ou uma filha; mas tenho a certeza de que perder alguém que se ama de forma incondicional é absolutamente insuportável para quem vive uma tragédia com estas dimensões. É preciso espaço, é preciso tempo e muita empatia.

Páscoa também tem de ser isto: dizer à Mãe que vive o pior momento da sua vida que estou, que estamos para o que ela quiser, mesmo que seja apenas para ouvir o silêncio. Ou o embalo.