“Oh Abreu…”
A leitura da decisão do Tribunal de Instrução Criminal demonstrou que um dos pilares da nossa democracia está carregado de problemas.
1. Livro: “O Futuro do Capitalismo”, de Paul Collier, é de leitura imprescindível para quem gosta de pensar qual o futuro que podemos vir a ter. É uma leitura despudorada de como o capitalismo tem de se regenerar. Uma leitura, profundamente sentida, da ética em torno do actual panorama sociopolítico e de como isso prejudica a discussão racional de questões puramente económicas. Gosto de livros, assim, que fazem diagnósticos e apresentam possíveis soluções.
2. Disco: queixava-se um bom amigo que nunca refiro aqui discos de jazz. É um género que ouço amiúde pois, com a música clássica, ajuda-me a pensar. “Soul Sign” é o último trabalho de Marquis Hill que recolheu a sua inspiração no zodíaco astral. Jazz e “spoken-word”, “neo-soul” e “hip-hop”, uma mistura explosiva de música e estilos que resultam em pleno, nesta reunião.
3. Ao fim de 60 anos a aturar-me, já me conheço um bocadinho. Por isso evito reagir a quente. Respiro fundo, dou duas ou três voltas à casa, faço um chá do que houver, sento-me e procuro ler, ver e ouvir quem sabe ou tem a presunção de saber. Papo tudo: especialistas, “comentadeiros”, presunçosos, interessados e interesseiros, tudo o que mexa e debite o que lhe vai na alma. Até passo, a correr, no enorme tribunal popular em que se transformaram as redes sociais.
Pelo meio, janto calmamente, tomo um café e um digestivo, com calma, leio meia dúzia de páginas do livro que estiver à mão, vejo o Joker e mando, umas vinte vezes, a miúda para a cama.
Em dias assim, deito-me tarde. Diz a sabedoria popular que a noite é boa conselheira. Acordo à hora do costume.
Com o “vemos, ouvimos e lemos” que nos permite “não poder ignorar”, como tão bem nos ensinou Sophia, penso então as coisas procurando, quando caso disso, chegar a algumas conclusões. Que são minhas, só a mim vinculam e, acreditem, muitas vezes indizíveis.
Sou um defensor acérrimo e intransigente da democracia liberal, dos seus três poderes e do sistema de “checks and balances”. Não reconheço valor a nenhum outro sistema para nos governarmos e sermos governados. É por isso que tudo o que afecte ou mesmo abane ligeiramente o edifício, perturba-me e preocupa.
A leitura da decisão do Tribunal de Instrução Criminal foi um desses casos, pois demonstrou à exaustão que um dos pilares da nossa democracia está carregado de problemas.
Como cidadão deste país, estou ciente dos meus direitos e deveres. E tenho todo o direito, como todos os outros portugueses, de ter a minha opinião, de, em liberdade, poder também eu “julgar”. Graças a Deus que o que “julgo” tem pouco valor, graças a Deus que temos, carregados de defeitos, os tribunais.
Comecemos por ter bem presente uma coisa: as nossas instituições são um reflexo daquilo que somos. Não as podemos querer “de mais” se somos “de menos”. Se as queremos melhores, temos de mudar para melhor.
Depois desta introdução, também eu julgo. Julgo um país que quarenta e tal anos depois da recuperação do Estado de Direito, um dos principais pilares da democracia e da liberdade, continua com uma justiça que, tão convenientemente para alguns, funciona mal ou não funciona de todo.
Julgo os partidos do centrão (PS, PSD, CDS) por fugirem, como o Diabo da Cruz, das reformas que este país precisa, com a justiça à cabeça.
Julgo uma classe política que não consegue tratar a justiça com o respeito que esta merece, dotando-a de leis claras, precisas e onde as prescrições, por exemplo, não beneficiam os prevaricadores.
Julgo os grandes escritórios de advogados que tão bem distribuem as suas peças de modo a fazerem aprovar leis cheias de buracos de agulha, por onde passam cáfilas de camelos.
Julgo uma justiça espectáculo que recusa o recato e se expõe pornograficamente.
Julgo um ministério público que faz da violação do segredo de justiça um modo de funcionar e que parece fazer do tropeçar em erros processuais um “modus operandi”.
Julgo os que na praça pública “investigam”, julgam e condenam baseados nos seus “achismos”.
Julgo a muita comunicação social (enfia a carapuça quem quiser) que despreza a justiça, acicatando e alimentando tribunais da opinião pública, porque isso alimenta quotas de audiência e vendas.
Julgo os desprezíveis momentos televisivos onde pseudo-especialistas condenam à fogueira quem não deixam ter o direito de exercer o contraditório.
Eu julgo o que posso julgar. O resto, bem ou mal, deixo para os tribunais.
4. Que fique bem claro que, para mim, Sócrates é um crápula. Um pulha que não olha a meios para atingir os fins a que se acha destinado. Um narcisista que sem, qualquer dúvida, enriqueceu à conta dos cargos que ocupou. Um mentiroso que corrompeu, foi corrompido e permitiu corrupção.
E isso ficou claro na decisão do TIC. O ex-primeiro-ministro foi declarado corrupto pelos mais de 1 milhão e 700 mil euros que recebeu de Santos Silva, apesar da prescrição. Está lá escrito preto no branco. E, porque o crime também configura “branqueamento de capitais”, vai ser julgado por isso. Note-se que a pena máxima para este crime, por mais incrível que possa parecer, é superior à dos crimes de corrupção (recebimento indevido de vantagem, corrupção passiva, corrupção activa, peculato, etc.).
Sai do tribunal a fazer uma festa, quando o juiz lhe chamou corrupto com todas as letras. Um verdadeiro idiota.
Sócrates consegue consubstanciar, na sua figura, tudo o que de pior há na vida política nacional: compadrio, nepotismo, incapacidade, mediocridade, incompetência, estagnação, estatismo, maldade…
É a personificação do pântano em que se transformou a política portuguesa.
5. Já o escrevi acima, mas acho não ser demais repeti-lo: há uma coisa que para mim é nauseabunda, verdadeiramente repugnante: programas e rubricas com “comentadeiros” que avaliam justiça, fazem julgamentos e emitem sentenças. Daqueles que todos os dias, ao fim da manhã e no início da tarde, nos entram pela casa dentro. Se deixarmos.
Uma espécie de “juiz decide” do século XXI.
Lembrei-me disso, por causa daquela Sra. Advogada que vai ser candidata do CHE... perdão, do PSD, na Amadora.
6. Dizia há dias uma grada figura da governação cá do burgo que eu era sempre “do contra”. Pode ter razão. Se as minhas ideias são contrárias ao que os socialistas do Governo Regional defendem, é normal que seja do contra. Mas devolvo o elogio: os senhores que nos governam são sempre “a favor”.
7. “A justiça não tem apenas de ser reformada. Terá de ser refundada. Há dois bloqueios. Um chama-se centrão político (PS e PSD). O outro chama-se corporação do direito. Curiosamente o actual PR representa ambos. A re-fundação exige muito mais sociedade civil.” - Ricardo Arroja