Crónicas

Governo grátis

1. Disco: “Carnage”, de Nick Cave e Warren Ellis.2. Livro: “Pegadas: Em Busca dos Fósseis Futuros”, de David Farrier, é um dos melhores livros que li nos últimos tempos. É um livro sobre os tempos que os nossos descendentes viverão. Tudo sustentado cientificamente. Um professor de literatura procura pegadas das acções humanas. É uma síntese criativa de escrita literária cheia de factos científicos para mostrar, da forma mais abrangente possível, diferentes evidências de que já vivemos numa nova era: o Antropoceno.

3. Não há nada que seja grátis no mundo. Todas as coisas, todos os nossos actos, deixam rasto. Se transpusermos esta ideia para o campo da política e da governança, também aí não há nada que seja grátis. O que recebemos com uma mão, pagamos com a outra.

No entanto, quem nos governa tudo faz para que fiquemos com a ideia de que tudo o que fazem e nos devolvem é grátis, é oferecido. Não é, nunca foi, jamais será.

Milton Friedmann disse que não há almoços grátis. Perante uma “partida“ tem que haver contrapartida. Podemos, com clareza e sem tibiezas, estender este conceito de gratuitidade e dizer que não há “Governos grátis“. Mas vivemos na ilusão de que somos de tudo merecedores, pois pagamos para isso.

O Sr. Governo é o alto promotor de comida, emprego, habitação, prosperidade, cuidados de saúde, segurança, educação, etc., e tudo isto, para uma larga maioria, não tem nenhum custo para quem quer que seja. O Sr. Governo tem uma “árvore das patacas” à qual recorre amiúde.

Contudo, é no “governo grátis“ que reside o maior problema no que à criação de riqueza e prosperidade diz respeito. Desenganem-se os que pensam que há milagres pela mão de uma qualquer Nossa Senhora da Economia.

Nós, portugueses que somos, vemos sempre um novo Governo com uma inusitada esperança. Alternamos entre o mesmo e o mais do mesmo, certos de que: é agora. Como cidadãos, somos todos sportinguistas: desta vez é que é.

É por isso que continuamos todos a deixar que viva em nós um certo sebastianismo que nos imobiliza, porque pensamos que num dia de nevoeiro chegará um qualquer salvífico que nos guiará, como crianças, rumo a um futuro radioso.

Olhamos para o Governo como um fornecedor de serviços gratuitos. Melhor seria que fôssemos exigentes e olhássemos para ele como responsável pela condução dos assuntos do Estado, dos assuntos de todos nós.

Porque uma das funções mais importantes do Estado é a colecta de impostos (que vão pagar o “governo grátis“), a tributação tende a ser cada vez maior, ficando o contribuinte com cada vez menos e o Estado com cada vez mais para, depois, ter de pagar a gratuitidade que exigimos. Aumentam as competências do Estado e diminuem as escolhas do cidadão.

Um Estado capaz tem as suas contas arrumadas, com um deve/haver positivo. Vão ver as nossas contas públicas.

Um mau Governo aumenta constantemente os impostos directos e indirectos, inventa taxas e taxinhas. No que lhe concerne, um bom Governo faz como em Singapura e devolve aos contribuintes o que não precisou de utilizar.

É aqui que somos chegados: impostos sufocantes, taxas e taxinhas asfixiantes, crescimento muito baixo, déficits recorrentes, desperdício nos recursos, apoios sem sentido (TAP, BES, etc.), gastos sociais deficientes, enorme percepção de corrupção, etc. Tudo isto, faz com que os gastos sejam cada vez maiores. A ineficiência e o desperdício são o mote da acção governativa.

Apesar de tudo isto, parece que vivemos no paraíso. Os nossos Governos, de cá e de lá, têm uma enorme incapacidade de autocrítica. Ou, então, fazem-no de propósito e como tal conscientemente. São nisso acompanhados por uma parte significativa dos media e de segmentos importantes da opinião pública, geralmente deficientemente informada.

O “governo grátis” é um mito na cabeça da maioria dos portugueses. Muitos deles nem pagam impostos directos. O “governo grátis“ sai caro. Muito caro. A maior parte das vezes, pagamos duas vezes pelo mesmo: quando recebemos um serviço subsidiado/“gratuito“ de qualidade duvidosa, daqueles que nos irritam e nos levam a procurar e a pagar, por esse mesmo serviço, fora do âmbito do Estado, pagamos segunda vez pelo mesmo. E se considerarmos que estes desmandos podem levar à recessão da economia e à crise, voltamos a pagar, por uma terceira vez, com mais aumento de impostos, com mais aumentos de taxas e taxinhas e com a perda de soberania.

4. Urge um debate alargado sobre o futuro da Autonomia. Debate que deve ser conduzido com a máxima transparência e abertura. Tem de competir ao Parlamento ocupar o lugar central nesse debate que se quer alargado a organizações da sociedade, partidos políticos e autarquias. Todos os procedimentos e debates devem estar acessíveis a todos e as sugestões do comum cidadão devem ser tidas em conta. Debate amplo e elevado, entre todos os que nele queiram participar.

A Autonomia tornou-se centralizadora; a Autonomia não reformou o sistema de eleição, avançando para círculos uninominais e um círculo de compensação regional; a Autonomia não remodelou o sistema político, mantendo-se a partidocracia em que vivemos; a Autonomia pouco fez para que o Ensino levasse a reforma de que tanto precisa, soltando-se dos corporativismos em que chafurda; a Autonomia não deu nenhum passo no sentido de criar um sistema fiscal próprio de fiscalidade reduzida; pouco fez, no que ao ambiente diz respeito; etc.

O problema deve-se a haver uns iluminados que se acham os seus donos, quando a Autonomia tem de ser de todas as cores e de todos os sentires.

Melhorar a autonomia passa por tudo fazer para diminuir o problema que a falta de escala representa; ampliar e melhorar o modo do seu funcionamento; repensar os modelos de participação; e fiscalizar a execução.

5. Quando chego a algum lado e vejo que os serviços estão informatizados, o que me deveria sossegar, pois, propiciador de eficiência e rapidez, não sossega. Normalmente, acabo por ter saudades dos tempos do papel e do papelinho. A informatização dos serviços só aumentou a carga de trabalho. A máquina de escrever e a caneta foram substituídos pelo computador e pela impressora. Tirando as coisas que, a bom tempo, programas como o Simplex trataram de simplificar, a burocracia parece maior e mais estúpida.

Após dez minutos à espera de que os dados sejam introduzidos, chega o momento do comando “print” que imprime uma catrefada de papéis que temos de assinar e que se destinam a ir viver para dentro daquelas capas da Âmbar pousadas em armários de alumínio. Como sempre. E, ao mesmo tempo, tudo aquilo existe, também, repousado algures em servidores que de serviço só têm o nome.

O computador, os meios informáticos, a digitalização de documentos, não vieram para substituir o papel, vieram para o validar, ou vice-versa.

Era bom que nos convencêssemos de que menos burocracia leva a boa governança. Esta existe, ou não, resultado da decisão política.

6. Gosto muito de Tim Burton. Ao fazer zapping num destes dias “apanhei” o seu Batman.

Acabei de ver o filme é fiquei com a ideia de que vivemos numa Gotham à nossa maneira. Corrupção, compadrio, nepotismo, incompetência, mediocridade.

A personagem Joker, sempre ele, de Jack Nicholson, diz, a páginas tantas, a seguinte frase: “This town needs an enema!”. Em bom português, “esta cidade precisa de um clister”!

Estou cada vez mais convencido ser disso que precisamos: um valente clister. Para quem não sabe o que isso é, um clister consta da introdução forçada de água no ânus para lavagem intestinal, purgação efectuada através de uma sonda rectal.

Imagino que não seja um procedimento muito agradável. Mas por vezes é necessário. Iria mesmo mais longe e atrever-me-ia a propor que a sonda fosse suficientemente grande para poder lavar cabeças por dentro, tanta é a porcaria que muitas contêm.