Desmaterializar desigualdades
«No que toca a silenciar mulheres, a cultura ocidental tem milhares de anos de experiência.»
Mary Beard (2017). Mulheres e Poder: Um Manifesto. Bertrand Editora, p.13
«Mas tudo está bem quando acaba bem porque, no fundo:
O que elas querem sei eu.»
Rui Zink, (2019). Manual do Bom Fascista. Ideias de Ler, p. 48
Ao longo da última semana fomos conhecendo várias propostas para a sinalização do Dia Internacional das Mulheres, instituído pela ONU em 1975 a 8 de março. Entre as várias propostas divulgadas, chamou à atenção a proposta da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) que decidiu sinalizar o dia com uma conferência sobre igualdade de oportunidades.
O problema proposto pela CIP é sério e está devidamente identificado: segundo o Índice de Diversidade de Género de 2020 (que analisa a igualdade de género em 600 empresas registadas no STOXX Europe) Portugal apresenta valores abaixo da média europeia no que diz respeito ao acesso a cargos de gestão de topo: 26,6% (a média europeia é de 30%, o objetivo 40%). Os resultados preliminares de um estudo coordenado pelo Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG) atestam que o diferencial remuneratório entre homens e mulheres em Portugal é de aproximadamente 22%. As estatísticas indicam também que o diferencial aumenta quando os dados são referentes a funções de topo.
Pois bem, a CIP, através do Projeto Promova, que tem como objetivos identificar e desenvolver talentos femininos com potencial de liderança, propõe uma conferência com o título «As mulheres e o emprego: um tema do Homem». O painel é constituído exclusivamente por homens que discutirão, entre si, os problemas que as mulheres enfrentam diariamente no universo laboral – nomeadamente no que toca ao acesso de cargos de gestão e à (des)igualdade salarial. A exceção está na moderação, a cargo de uma mulher que tem a tarefa de apresentar o currículo dos intervenientes e passar a palavra.
Não está em causa o facto de as questões em torno da igualdade deverem ser debatidas por mulheres e homens, são problemas de todas e todos nós. Mas é, no mínimo, estranho propor-se a discussão de um tema e excluir completamente as pessoas que são diretamente afetadas. Também caricato é o facto de que esta iniciativa não se fica(va) por homens a debaterem entre si os problemas das mulheres sem que as mulheres tenham uma palavra a dizer. O texto de apresentação informava que se pretendia «desmaterializar o Dia da Mulher» através de «um debate de líderes masculinos» em que está previamente decidido que o Dia Internacional deve ser celebrado como «legado histórico» e «não como um dia de luta». Temos, portanto, um grupo de homens que se propõe a discutir entre si o que «trava a ascensão de mais mulheres a cargos de gestão». Ou não. Há a esperança de simplesmente olharem uns para os outros e de repente fazer-se luz...
Estas expressões que cito faziam parte do texto de apresentação da conferência que, entretanto, foi profundamente alterado. Mas o painel de debate exclusivamente masculino não. Percebe-se porquê, já que a própria CIP tem uma Direção constituída por 25 membros em que apenas três são mulheres (12%), uma Comissão Executiva com 10 elementos em que um desses elementos é uma mulher (10%), um Conselho Geral com 65 membros, entre os quais três mulheres (4,6%), e nenhuma mulher na Mesa da Assembleia Geral e no Conselho Fiscal.
O Dia Internacional das Mulheres nunca foi uma data consensual. Durante anos assistimos à proliferação de comentários indignados, condescendentes ou jocosos pela sua existência, coisa que não acontece com a maioria das restantes sinalizações. O Dia Internacional das Mulheres incomoda talvez porque o que fundamenta a sua existência é uma luta por poder: poder falar, estudar, votar, participar, escolher parcerias e afetos, ocupar lugar na esfera pública, secularmente reservada quase exclusivamente aos homens. É, portanto, um dia que sinaliza uma luta que requer cedências e negociações no que diz respeito à igualdade de direitos entre mulheres e homens, em todo o mundo. É isto que os senhores da CIP, à boleia do Dia Internacional das Mulheres pretenderam «desmaterializar».
O que continua verdadeiramente em causa – e por isso uma luta diária – é a desconstrução permanente de estereótipos e papéis de género que condicionam liberdades: de escolhas profissionais, de direitos políticos, de relações laborais e financeiras igualitárias, de equidade na organização familiar, de direito à vida privada. A desmaterialização que tem de acontecer é a de uma democracia que tolera as desigualdades em função das pertenças (em função do género, da cor, da etnia, da religião…).
O Dia Internacional das Mulheres lembra-nos todas as conquistas que fizemos, mas também todos os retrocessos, todos os recuos. E a realidade diz-nos que estamos pior do que há um ano: a pandemia tem sido aliada do exercício da violência, confinando as mulheres (e as pessoas idosas, e as crianças) com quem as agride. Segundo os resultados preliminares de um estudo do Instituto Europeu da Igualdade de Género (EIGE), a pandemia alargou ainda mais a desigualdade de género em termos laborais, penalizando sobretudo as mulheres mais jovens. Passado um ano, para além dos efeitos da pandemia, assistimos à normalização de um partido que debateu a castração física de modo irreversível de mulheres que decidam interromper a gravidez e que apela a um discurso normativo que reserva às mulheres um papel (no seu imaginário) tradicional, uma versão portuguesa do «bela, recatada e do lar».
Assinalar o Dia Internacional das Mulheres significa combater estes retrocessos civilizacionais. Passa por não recuar perante discursos que diabolizam a luta das mulheres por direitos iguais. Passa por assumir que uma verdadeira democracia representativa não pode dispensar as mulheres ou continuar a permitir que uma maioria demográfica continue a ser uma minoria social. Não é. Não somos. Passa por assumir que em democracia todas as pessoas têm os mesmos direitos. Passa por desmaterializarmos as desigualdades e injustiças cometidas contra mulheres e meninas e que diferem de grupo para grupo, de Região para Região, de País para País – e não as chamadas de atenção para essas desigualdades. Passa por um combate tenaz contra todas as formas de violência e contra todas as tentativas coartar os direitos das mulheres, de todas as idades.
As Mulheres Socialistas da Madeira propõem hoje, pelas 18:00, uma 2.ª edição das Jornadas de Março desta vez em formato podcast. «Pobreza e Desemprego» é o tema que contará com os contributos da Presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego, Carla Tavares, e da Vereadora da Câmara Municipal do Funchal, Madalena Nunes. Moderação a cargo da Presidente da Comissão Política das Mulheres Socialistas da Madeira, Andreia Caetano. A acompanhar (e participar) através das páginas de facebook do PS Madeira e das Mulheres Socialistas da Madeira.