Hansel e Gretel
Se há história infantil que todos conhecem (pelo menos, os anteriores à Internet) é a dos dois irmãos que os pais, incapazes de sustentar, decidiram abandonar na floresta, esperando que alguém os encontrasse e deles cuidasse. O esperto Hansel marcou o caminho com pedrinhas e depois com migalhas de pão, mas os pássaros comeram-nas, e viram-se sós na floresta hostil.
Despachar crianças não foi ideia dos irmãos Grimm; foi prática corrente em épocas passadas, e os conhecidos irmãos contadores limitaram-se a coligir, redigir e publicar esta e outras histórias, evitando assim que se perdesse esse património da tradição popular.
O problema está em que, tal como a escravatura não foi completamente abolida, a saga dos Hansel e Gretel também não acabou.
Continua nos barcos de aventura em que famílias inteiras procuram refúgio ou uma vida melhor no lado do Norte do Mediterrâneo, e mesmo nas oceânicas Canárias. Por vezes, com o desfecho ilustrado pela imagem daquele menino morto na praia, que comoveu todo o Mundo.
Continua nas caravanas de sonhadores, que partem dos conturbados países da América Central e do Sul, rumo ao El Dorado a norte do Rio Grande.
É neste caso que a lenda mais se aproxima da realidade. Agora, são os pais que enviam as crianças desacompanhadas, não para a floresta da bruxa má, mas para as patrulhas do guarda da fronteira. Que não as metem no forno, e os campos de acolhimento são decerto melhores que as matas e desertos inóspitos que atravessaram.
Hanselito e Gretelita são a versão latina e atualizada do conto dos irmãos Grimm. Desta vez contada na televisão, e difundida em tempo real pela Internet. Mas com uma diferença: Hanselito não deixou atrás de si pedrinhas ou migalhas de pão, para marcar o caminho, pela simples razão que não tinha casa para onde voltar.
Portugal foi sempre um país de emigração, organizada no tempo dos Descobrimentos e do Império, desorganizada para o Brasil no século XIX, ou para a Europa no século XX. E estas histórias não nos deixam indiferentes.
O atual Presidente dos EUA parece ter compreendido que a raiz do problema não está na impermeabilização da fronteira, com um muro de sinistros precedentes, mas na resolução dos problemas que dão origem à emigração.
Pelo que nada melhor que reproduzir as palavras do ativista argelino Kamel Daoud, transcrita no blogue “A Bigorna” de David Martelo:
“A pergunta que devemos colocar a nós próprios não é: porque sou mal acolhido; mas é: porque parto, porque deixo a minha terra?”