O futuro da música ao vivo
O futuro pós-COVID da música ao vivo, clássica e não só, apenas começa a ser escrito nesta altura. As vagas de variantes do vírus parece que passam, e passarão, pelo mundo qual um tsunami, levando países inteiros das altas de esperança e expectativa aos abismos de desespero e isolamento. No fim disto tudo pode bem ser necessário habituar-se a uma coabitação desconfortável com um vírus que provavelmente vai, tal como vários outros no passado, desaparecer e reaparecer com alguma imprevisibilidade. Estas condições são tudo menos propícias para uma atividade que depende de organização antecipada, projetos plurianuais e confiança nos públicos. Quanto mais impossíveis e proibitivas as condições, mais se cristalizam as múltiplas razões de precisarmos das experiências de atuações ao vivo, para nos ajudarem a superar estes tempos sem danos e, mesmo, lesões mentais e espirituais.
As criações musicais geralmente não têm uma ligação intuitiva com tempos difíceis: se bem que a pandemia da gripe, em 1918, inspirou algumas obras posteriores, na música da altura existem muito poucas referências à doença em si. Na altura, tal como hoje, a maioria das obras parece ter sido criada a despeito da pandemia e não como uma resposta artística direta.
No entanto, todas as experiências que hoje vivemos ouvindo, partilhando e interpretando a música são vividas através dum prisma intensamente pessoal de isolamento e confinamento. O sentido da perda e sofrimento resulta num desejo profundo de libertação e expressão ilimitada. Em 1918, as salas e teatros em Londres, por exemplo, ficaram abertos e sem distanciamento social, por, já na altura, terem sido considerados uma forma essencial de reforço da saúde mental. As consequências, em termos das mortes associadas, foram nefastas. Hoje em dia, sabemos muito mais sobre as vias de transmissão de vírus. E fechamos quase tudo ou mesmo tudo. O preço ainda está por calcular.
Onde é que estará o equilíbrio? Como é que vamos definir e viver um futuro física e mentalmente seguro?
Como é que o legado da pandemia vai moldar o nosso futuro? E que papel é que a arte ao vivo vai poder ter nesse molde? As emoções do reencontro com o agora e o aqui, as descobertas de caminhos alternativos e fugas virtuais às camisas-de-força virtuais, a consagração da casa enquanto palco mundial, a mudança sísmica do paradigma daquilo que a música ao vivo passou a significar para todos nós – o futuro da criatividade residirá agora na sociedade de uma maneira muito mais democratizada e equitativa. A amargura da árvore pandémica pode bem trazer frutos doces e universalmente acessíveis, se formos capazes de aprender. O futuro significado da experiência musical ao vivo pode, e deve, usufruir da experiência vivida no presente.
Curiosamente, as experiências com públicos nos concertos da música clássica ao vivo, noutros países da UE, no ano passado e neste ano, demonstram que as taxas de ocupação mantiveram a sua proporcionalidade conforme a tipologia e atratividade do programa e executantes. No entanto, apesar de sempre ser posta à venda uma quantidade muito reduzida de bilhetes, devido às restrições, a procura em geral diminuiu, pois o público continua reticente e desconfiado. Será necessário ganhar de novo a confiança e reforçar a sensação de segurança individual. Mas a verdade é que as salas de concerto de música clássica são, geralmente, sítios privilegiados neste sentido, tanto pelo perfil do público, como pela ambiência e vivência de um evento deste tipo, sem falar sobre o regime de controlo facilmente aplicável. Na Alemanha, quatro das maiores instituições promotoras de eventos culturais que no ano passado mantiveram alguma continuidade das suas atividades, apesar de terem registado casos de infeção entre os intérpretes, não detetaram nenhum caso de infeção no público.
Os patentes desafios à cultura musical clássica, incluindo os seus promotores, artistas e públicos, não terão uma resolução rápida nem fácil. Neste momento, a improvisação e a reação instintiva ainda são a regra e a necessidade para uma sobrevivência condicional. Mas as raízes dum futuro pós-COVID já estão a crescer nestes tempos e oxalá a riqueza das experiências e invenção agora demonstradas se transformem numa fonte inesgotável da democratização do usufruto das artes vividas ao vivo.