Da saudade
O meu pai não teve oportunidades, fez o que lhe foi permitido, o que lhe era possível, mas, quando conseguiu escolher, optou pelo meu futuro, pelo futuro do meu irmão
As ameixeiras estão em flor e tenho pensado muito no poema que o professor Inácio me deixou declamar na récita do 11º ano. Aqui, na casa do Laranjal, a vida segue como em todas as primaveras. Há rosas, azáleas e orquídeas no jardim e os dias estão maiores, mas fez quatros meses que o meu pai morreu e há um vazio, uma estranheza. E como vivemos tempos que não nos deixam esquecer, engoli em seco as dedicatórias que os filhos deixaram aos pais no Facebook.
Vi senhores em fotografias a preto e branco, homens como o meu pai, pessoas normais que foram tudo para pessoas como eu. E tive saudades de lhe telefonar, de mandar um postal ou passar a correr para dizer que me lembrei, que me lembrava sempre. Teríamos falado das notícias, das consultas no hospital. Sim, que tenho falta disso, daquelas horas intermináveis à espera de vez, de o ouvir comentar que o mundo estava cheio de velhos como ele. “Onde está a rapaziada nova?”
Os velhos ficam mais depressa doentes, repetia-lhe muitas vezes. Depois sorria-me, que lhe cansava estar ali, naquelas esperas, mas era bom estar comigo. Era um amor bonito, o que tinha por mim, que vinha acrescentado com o carinho que os pais dedicam às filhas. Guardava-me as melhores ameixas, tinha gosto em mostrar-me os pintaínhos acabados de nascer e fazia quase tudo o que lhe pedia. E ensinou-me a ver o Carreiro de São Tiago no céu e a ouvir o mar no interior de um búzio.
Não era extraordinário, era um homem duro, com uma vida dura e difícil, daquelas de fome e frio, sem escola, daquelas capazes de vergar os espíritos e os corpos à servidão. Isso corria-lhe no sangue, nos modos ásperos, de cada vez que me dizia que, o mais importante, é não ser escravo. Dos outros, dos patrões e da existência que embrutece, que leva o brilho de tudo. Por isso, quando tirava a roupa do trabalho, tinha porte e figura. Era uma maneira de dizer que estava vivo e não estava vencido.
E tinha o dom de me fazer sentir especial, não escondia o sorriso, nem a alegria, nem o desapontamento quando não o ia visitar. Às vezes amuava, eu também amuei umas quantas, sobretudo na adolescência, mas nunca durou muito. E, mesmo sem pedir desculpas, voltava sempre a ser o que era: o meu pai e eu, com carinho, aquele que é mesmo importante e nos faz gente.
O meu pai não teve oportunidades, fez o que lhe foi permitido, o que lhe era possível, mas, quando conseguiu escolher, optou pelo meu futuro, pelo futuro do meu irmão. E ser o sucesso de alguém, vê-lo nos olhos de alguém está para lá do que se pode classificar ou designar. Só existe nos olhos dos nossos pais.