Está (quase) tudo controlado
Gostariam que estivesse tudo controlado, mas de facto não está. E a dúvida, essa, é «desmancha prazeres»
«Se você escreve tantas histórias, por que não faz uma só para mim?» Foi a pergunta do filho, aos três anos, que provocou em Clarice Lispector a decisão de escrever para crianças.
A partir desta pergunta nasceu «O Mistério do Coelho Pensante», o seu primeiro conto para crianças, uma homenagem aos coelhos que pertenceram aos seus filhos e que, para além de dores de cabeça, lhe causaram «muita surpresa de encantamento». Foi com este conto que ganhou um prémio de literatura infantil em 1967. Ela, uma escritora que três anos antes tinha lançado um livro sobre o encontro de uma mulher com uma barata, num quarto dos fundos, obra que a tinha atirado definitivamente para a prateleira de autores e autoras «herméticas» e «difíceis», afinal escrevia (também) de forma a captar a atenção de uma criança, o que lhe mereceu o seguinte desabafo: «Como é? Quando escrevo para crianças, sou compreendida, mas quando escrevo para adultos fica difícil? Deveria eu escrever para os adultos com as palavras e sentimentos adequados a uma criança?»
A (minha) verdade é que a escrita de Clarice Lispector reflete as palavras e sentimentos de quem se espanta com tudo, até mesmo com as coisas aparentemente simples, como é a vida íntima dos animais de estimação. Uma das características mais interessantes da sua escrita é o facto de os animais que povoam os seus livros (para crianças e os outros) serem animais comuns, absolutamente normais, sem qualquer característica que os torne bestiais; a diferença está no facto de que, de repente, Clarice Lispector chama a nossa atenção para uma característica corriqueira que se torna central na narrativa. No caso do conto sobre o coelho pensante, «A coisa especial que acontecia com aquele coelho era também especial com todos os coelhos do mundo. É que ele pensava essas algumas ideias com o nariz dele. O jeito de pensar as ideias dele era mexendo bem depressa o nariz. Tanto franzia e desfranzia o nariz que o nariz vivia cor-de-rosa.»
Lembrei-me de Clarice Lispector (o que é bastante frequente) a propósito de um pequeno ensaio que estou a ler e que se chama «Elogio da Dúvida», da autoria de Victoria Camps, uma filósofa e professora catedrática de Filosofia Política e Moral. E lembrei-me do «Mistério do Coelho Pensante» porque também este pequeno texto faz franzir e desfranzir o nariz de quem o lê ao ponto de parecer «estar sempre recebendo e mandando telegramas urgentes», principalmente num tempo em que nos querem fazer desistir da dúvida que «inquieta».
A leitura deste livro (e a lembrança do coelho de Clarice) coincide com o apelo do Presidente do Governo Regional para que, para não haver dúvida, o melhor é subtrair parte da informação. A dúvida está na disparidade entre os números de infeções por Covid-19 divulgados diariamente pela Secretaria Regional da Saúde e os números divulgados pela Direção Geral de Saúde, raramente coincidentes. Sabe-se agora que o problema esteve numa falha no reporte desses números por parte da Região, mas a primeira tentativa foi de negar que a falha pudesse ser nossa (e foram três os comunicados numa só semana para convencer-nos de que o problema era da DGS). Mas a dúvida foi o que possibilitou «franzir e desfranzir o nariz» em relação ao que nos era apresentado como sendo inquestionável. Se há discrepâncias, dizia o Presidente do Governo Regional, o melhor é a DGS (que não as inventa) deixar de divulgar os números que o Governo Regional reporta. E assim passa a bater tudo certo.
Esta aversão pela dúvida, que procuram resolver ocultando a informação, ficou bem patente na ida do Secretário da Saúde à Assembleia Legislativa Regional, esta semana. No âmbito da discussão de um decreto legislativo regional sobre a carreira de médicos-dentistas, a bancada do PSD e o Secretário Regional da Saúde tentaram despachar, em três tempos, o assunto dos números que não batem certo e dos comunicados do Governo Regional a responsabilizar a DGS quando sabiam que o problema não era da DGS. Não era aquele o tempo para o fazer, mas exatamente porque o tempo era pouco e não permitia muitas perguntas nem respostas, era o tempo ideal para o Secretário e para a bancada que o apoia. Como o PS-Madeira deixou bem claro, o assunto deve ser clarificado numa audição requerida para o efeito, com tempo suficiente para expor as dúvidas sobre as incongruências e com tempo para que as respostas as esclareçam.
Já o pedido de audição à Presidente do SESARAM, para esclarecer questões relacionadas com a dificuldade no acesso aos diferentes serviços, gestão de recursos e produtividade do SESARAM, foi chumbada. Tal como os pedidos anteriores (e já foram três). E, no entanto, quando se questionou o Secretário sobre alguns desses problemas – como é o caso da contratação de profissionais para os laboratórios de análise sem a titulação profissional necessária para o exercício das funções – a resposta do Secretário da Saúde foi a seguinte «naturalmente que aquilo que se passa no SESARAM é da responsabilidade do SESARAM, é da responsabilidade do Serviço Regional de Saúde, o SESARAM tem plena autonomia para contratar quem muito bem quer e entende». Parece que para estar tudo controlado é de evitar, a todo o custo, que quem preside o SESARAM responda ao que quer que seja na Assembleia, apesar do SESARAM ser um organismo público.
Já nem tenho bem memória da primeira vez que ouvimos este que se tornou um mantra do Governo Regional: «está tudo controlado». Julgo que a primeira vez foi durante os incêndios de 2016 que afetaram particularmente o Funchal; nessa altura o Presidente do Governo Regional recusou a ajuda que nos foi disponibilizada pelos Açores e pelo Continente porque a situação estava «perfeitamente controlada». Não estava, como se viu nas horas seguintes, com cerca de 1000 pessoas deslocadas.
Também agora, no âmbito da evolução da pandemia na Região, voltamos a ouvir repetidamente que está tudo controlado. Mas todos e todas nós sabemos que a situação, sendo imprevisível em todo o mundo, não é mais previsível por cá. Portanto, a história de que está tudo controlado não nos tranquiliza, somos suficientemente experientes para saber que quando nos dizem repetidamente que a situação está controlada, geralmente não está.
Mas a expressão «está tudo controlado» é uma boa forma de resumir a ação do Governo e das forças partidárias que o apoiam. Desde o uso da Quinta Vigia para reuniões e almoços partidários, à aversão quanto à constituição de cooperativas e associações pouco manipuláveis; desde o veto para que se discuta em plenário petições com mais de 3000 assinaturas, até aos lamentos vindos da bancada do PSD em relação à liberdade dos deputados e deputadas da oposição publicarem nas redes sociais a sua perspetiva sobre o que é discutido e como é discutido nos plenários da Assembleia Legislativa da Madeira.
Para que esteja tudo controlado parece valer tudo, até convocar reuniões de Comissões à revelia de quem as preside ou vetar a subida a plenário de projetos de resolução que propunham alternativas aos entraves com que justificaram o chumbo de um decreto legislativo regional proposto pela oposição.
Gostariam que estivesse tudo controlado, mas de facto não está. E a dúvida, essa, é «desmancha prazeres. É como uma semente que cuspo ao morder uma maçã, um entrave a continuar a trincar a maçã com tranquilidade».