Obrigado bom pai
Boa noite!
A esta hora, na Eira da Ribeira, já dorme aquele que contribuiu para a minha existência, educação e irreverência. Contou-me hoje que já tinha apanhado a segunda pica contra o bicho e estava mais aliviado, porventura pronto para o confronto habitual com aquilo que lhe dá vida e gozo, metendo a enxada para colher o que lança à terra, em jeito de exercício de manutenção com resultados eloquentes.
Devo-lhe a vida, a minha irmã e os valores, ou seja, tudo aquilo que ainda nos junta alegremente e nos dá dimensão eterna, até porque lá em cima a mulher nossa mãe olha por nós.
Devo-lhe a condução cuidada dos assuntos melindrosos e a verdadeira carta, a arte de percorrer estradas com dois sentidos onde só cabe um carro.
Devo-lhe ainda aquele livro que só o tempo contraria, feito de dias que lhe dão a nefasta sensação que emigrei.
Como sabes bom pai, o meu sonho escreve-se demoradamente, ao ritmo daquela aventura que percorreste durante décadas, exposto aos perigos da costa Norte, mas sem horas para servir quem precisa, de forma infalível e visionária. Antecipavas as derrocadas, fintavas o sono e contavas que passassem as sete ondas agrestes para que a “abelha” chegasse intacta ao destino.
Houve dias em que não te via, mas em que adormecia na certeza que trarias uma surpresa em forma de chocolate, o rabo da vaca que só muitos anos mais tarde os grandes cozinheiros haviam de descobrir, os 20 sacos de leite para distribuir pela vizinhança e as maçãs que partíamos em quatro. Houve noites em que não dormiste, em que foste parteiro, socorrista e o garante da ponte entre a ruralidade extrema e a urbanidade que despontava. Houve anos duros em que deste tudo para que nada nos faltasse.
Obrigado pai pelo exemplo de vida íntegra que me sabe tão bem escrever.