Crónicas

Âncoras... e asas!

Há um ano sob o jugo da pandemia. Ao princípio era algo lá para os confins da Ásia, aquelas coisas que julgamos só acontecerem aos outros. E como o narcisismo endémico tende a criar ilusões que nos façam “funcionar”, esse é aquele nível em que “com o mal dos outros bem podemos nós...”

Afinal, não pudemos assim tanto e, de um dia para outro, acordámos bem no meio da tempestade. Reagimos, então, como de costume: primeiro, o desdém e a recusa; depois, o medo e a revolta; finalmente, a aceitação e a integração do problema no “humanum”, demasiado humano, que é o rosto da existência mesma tal como ela é — ou como a fizemos: é a vida em “modo de usar”, a fragilidade do homem e da terra marcando de novo as suas balizas, face aos bezerros de ouro sobre altares de barro e ao predatório das conquistas que, da natureza, recalcam a verdade e as regras. Então, a fealdade do mal trouxe o crescimento exponencial dos nossos piores temores, sofremos as quarentenas obrigatórias, e julgámos alcançar a sonhada “normalidade” ali ao dobrar de um novo confinamento, ilusão sempre desmentida e de novo retomada: nós somos assim, a esperança não desarma. E vimos o “anjo da morte” — chamado “vírus chinês” ainda muito antes da sua replicação como “inglês”, ou “do Brasil”, as variantes a crescer e o medo também —, vimo-lo avançar cidades adentro e dizimar sem aviso novos e velhos, a “terceira idade” feita pasto da morte, o negrume da estatística e do contágio envolvendo a terra inteira qual nova praga do Egipto. Como vimos também o exercício da fraternidade, a dádiva da entreajuda e o cuidar do outro, o coração humano a pulsar numa escala até agora tida por impossível: estava-se, então, na frente aparentemente inglória da luta quotidiana contra “o mal”, a medicina e a bondade fazendo por não sucumbir face à fila de espera dos crematórios e ao espetáculo dantesco da maquinaria pesada a improvisar cemitérios.

Muitos de nós jamais pensámos ver tão de perto o rosto do mal. Um ano depois, teremos aprendido alguma coisa com isso?

Aquilo a que chamamos o Mal, com maiúscula, tem o seu quê de inexplicável, é algo maior que nós, filósofos e teólogos fazem aproximações ao que chamam o “mistério do mal”, que tem muitos rostos, mas nenhuma explicação. Podemos desistir, até, da inquietação metafísica da pesquisa, mas não podemos ignorar as múltiplas cicatrizes que ele traça sobre a condição humana. No devir do tempo e da história, o mal atinge cada qual como experiência pungente da própria finitude, inadequação radical e persistente entre o desejado e o alcançado, a ferida sem cura, a pergunta sem resposta. E, no entanto, avançamos vida fora, há o triunfo e a perda, a vitória e a derrota, mas seguimos adiante, viver é preciso. Mas, subsiste aquela sombra irremovível atravessando os dias e os anos no exercício concreto da maldade, doença da alma, todos os dias a injustiça, o sofrimento e a morte, perguntas sem resposta que apontam para as múltiplas faces do mal.

Uma coisa é certa: a pandemia não é “o mal”, mas o resultado do nosso concreto estar-no-mundo, e do que fazemos com as nossas escolhas face à natureza e aos outros. O que vimos e o que sofremos aproximou-nos do mistério que é a vida humana, enquanto radical experiência de finitude em busca de sentido e de redenção. A concreta experiência do absurdo e da inumanidade do mal é uma “pedagogia negativa” para a nossa irrefreável busca do sentido e da esperança: “Não temos apenas âncoras, também temos asas” (Tolentino Mendonça).