Uma instituição conservadora
Não vale por isso a pena discutir a moral íntima da Coroa, e da Rainha e dos seus descendentes. Vale a pena garantir que ela não invade a esfera civil
Certos momentos valem uma era. Lamentavelmente, a entrevista de Meghan Markle e do Príncipe Harry valeu pela nossa. Uma frase, especificamente, atira-se como um dardo ao coração do tempo: Meghan não esperava ter de dedicar uma vénia à Rainha de Inglaterra em privado. Julgava que se tratava de uma questão coreográfica, para inglês ver, uma cortesia dispensável perante “a avó do meu marido”. Oprah, que os entrevistou em representação da sensibilidade moderna, desenhou com os lábios em choque a primeira letra do seu nome.
Cada vez que uma viúva da vida normal se pronuncia sobre a família real, e os meandros da corte em especial, o Ocidente entra em convulsão. Aquela gente não tem sentimentos. São arrogantes, elitistas, austeros, preconceituosos, talhantes que desmancham, com facas de ouro, os casamentos reais sonhados pelos corações simples e puros. Um sedimento arcaico, que discretamente subtrai a sociedade da sua merecida e necessária evolução.
Há aqui concerteza um equívoco. Suponho que ninguém estivesse à espera de que Buckingham fizesse algo de distinto do que sempre fez. Muito pelo contrário. Do seu ponto de vista, era ali, numa situação crítica e de confronto manifestamente desconfortável com a moral comum (“plebeia” talvez seja a palavra correcta), que devia reafirmar a sua diferença.
Com calma. Quem conhece a sanha dos tabloides britânicos, e até a fúria aristocrática do mais irredutível sistema de classes do mundo (é o inglês), pode imaginar e compadecer-se com o que Meghan Markle sofreu. Negra, divorciada, actriz, americana, mais depressa caía na anedota de salão do que no tratamento digno. O desconhecimento do protocolo e hierarquias mais ou menos tácitas da nobreza faziam dela um alvo, de resto fácil, para os ataques mais maldosamente subtis. Os paralelismos algo forçados com Diana, igualmente assediada pelos media e atreita à família do marido, desempenham aqui uma função ambivalente, mas seguramente nefária para o palácio. A fúria contra a realeza não custa a compreender.
Só que a Coroa britânica não se guia nem age por critérios práticos, ou em função de costumes contemporâneos. Compreende, presumivelmente, as vantagens da identificação com o povo, o apelo da celebridade, de formar “opinião”, de responder aos jornais na mesma moeda. Entende a lógica de exposição sentimental do “reality show”, e reconhece que Harry e Meghan seriam importantes activos nessa lide. Sucede que não os pode aceitar sem trair a monarquia.
Os valores da Coroa não são os valores de um Governo, do Instagram, ou do instinto reformador de uma nora mais pespineta. São valores de outra natureza. Assentam na tradição, na perpetuidade e na ordem. Não respondem perante o eleitorado, mas perante Deus, e é por isso que a Rainha é ungida pelo Bispo, e não designada pelo Parlamento. Estes poderes, hoje simbólicos mas nisso eficazes, transmitem-se por injustíssimo sorteio de linhagem e primogenitura. A mensagem é tão clara quanto compacta: uma Nação não existe apenas no espaço, mas também no tempo, e o vínculo com os antepassados depende de um conjunto de rituais e princípios políticos, sociais e familiares com que seria perverso romper, pois a sua repetição traz legitimidade e sentido histórico ao Estado e ao Governo. O Passado tem então o mérito de não ter corrido inteiramente mal, e o inédito merece a desconfiança de todas as experiências.
A Coroa é pois uma instituição conservadora. E é daí, e não de uma qualquer má vontade que derivam – lamento – o racismo, o elitismo, o provável ostracismo que Meghan sofreu. Quando o poder se distribui por laço de sangue, o casamento é um acontecimento político. A atenção aos genes das crianças, à aparência das crianças, à compostura das mães, a diferença entre a linhagem real e a afim, a fatal hipocrisia que daí advém não são distúrbios, mas injustiças integrais à preservação do regime, como o caso espanhol também demonstra. Um casamento real pode evidentemente envolver amor ou sentimento, mas governar em função deles seria uma revolução como outra qualquer.
Não vale por isso a pena discutir a moral íntima da Coroa, e da Rainha e dos seus descendentes. Vale a pena garantir que ela não invade a esfera civil. Ora, a família real não andou por Liverpool a pedir a defesa da raça inglesa, ou que os nativos casassem dentro da “sua” classe social, cultura e nacionalidade. Pediu a Meghan que abdicasse da sua identidade, em nome de uma função que ela própria escolheu procurar. A sua influência é, neste aspecto, daninha? Possivelmente. Convém que ela não se alastre à sua casa e à minha? Deus nos guarde. Mas sem esquecer que a Coroa está no seu direito e no seu lugar.
À menina Markle aconteceu o que acontece sempre que um corpo leve e em movimento embate com um objecto massivo e inamovível. Só que a monarquia estava lá primeiro. E, pelo andar da carruagem, é talvez importante que por lá continue. Para contraste e contenção do mundo volátil, sensacionalista, e demagogicamente relativo a que a ex-Duquesa agora regressou.