O bom, o mau e o bibelô
Mas a figura sonante, e que se esperava cooperante, cedo percebeu o papel que lhe estaria reservado. Adorno municipal. E antes que por equívoco falasse foi, sumariamente, desconvidado
Mas a figura sonante, e que se esperava cooperante, cedo percebeu o papel que lhe estaria reservado. Adorno municipal. E antes que por equívoco falasse foi, sumariamente, desconvidado
Longos dias têm cinquenta anos. Parece matéria de ficção literária, mas a velha discussão do novo aeroporto de Lisboa tem cinco décadas. Quase tantas como as localizações prometidas. De Rio Frio à Ota, de Alcochete para o Montijo. Ao todo foram 17 os locais estudados, mas aeroporto nem vê-lo. A letargia aeroportuária, agora reduzida a emperro municipal, é reflexo da liderança a que nos submetemos. A governação do país deixou de ser estrutural e passou a ser de circunstância. Os tempos não estão para grandes chatices.
O bom: Banana Glamping
A ideia podia ter nascido de uma visita ao Estreito da Calheta. De quem lá observa as bananeiras arrumadas nos socalcos que se desdobram encosta abaixo. Todavia, conta a Catarina Silva, o Banana Glamping nasceu em Cabo Verde, inspirado pelo desperdício gerado pelas extensas plantações de bananeiras no país. Três amigos – a Catarina, a Cátia Sousa e o André Lopes – idealizaram um complexo turístico sustentável e viram, no que resta da bananeira, a matéria prima para torná-lo realidade. Ao todo, serão cinco tendas de glamping instaladas na Calheta ou na Ponta do Sol. Mas não fica por aí o projeto. À sustentabilidade da estrutura junta-se a experiência oferecida. A visita às plantações, o contacto com os produtores, a ligação à comunidade local. O conceito, que se fez de uma ponta à outra da Macaronésia, venceu o Tomorrow Tourism Leaders, um concurso que premeia os projetos turísticos assentes na sustentabilidade. E, por importante que seja o reconhecimento, a mais-valia do Banana Glamping é o caminho que aponta ao turismo regional. O regresso à essência do destino, o retorno ao que nos distingue e que, por isso, nos valoriza. O caminho oposto à diferenciação pelo preço, corrida até ao fundo da qual estamos destinados a sair depauperados. O turismo que se reinventa nas crises, e que a cada reinvenção se apura, é o turismo que cria valor. É desse turismo que precisamos. Mais do que nunca.
O mau: Funchal – Capital Europeia da Cultura
O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. É essa fatalidade popular que assombra a candidatura do Funchal a Capital Europeia da Cultura. Começou tarde e ameaça acabar torta. Mas ter sido das últimas cidades a anunciar candidatura, não retira argumentos ao Funchal para levar de vencida a contenda. Ainda que última candidata, o Funchal foi a primeira cidade atlântica, o primeiro marco no mapa dos Descobrimentos. Essa centralidade original, agora redescoberta, teria sido um mote invencível para a candidatura. Criou-se uma imagem apelativa, convidou-se um nome sonante, lançou-se um slogan engraçado, mas não se foi mais além. À primeira oportunidade, ficou claro que a candidatura era mais campanha do que empenho, mais encenação do que vontade. Mais um projeto a longuíssimo prazo. Habitação social em 2022, capital da cultura em 2027, plano de investimento até 2030. Mas a figura sonante, e que se esperava cooperante, cedo percebeu o papel que lhe estaria reservado. Adorno municipal. E antes que por equívoco falasse foi, sumariamente, desconvidado. Tudo de acordo com as regras da nova política. O presidente convida, mas é o gabinete anónimo que dispensa e destrata. Sem perder tempo, o perfil do novo comissário está já a ser preparado. Procura-se homem ou mulher de meia-idade, com disponibilidade imediata. Privilegia-se candidato com trotinete elétrica para deslocações urgentes à Câmara Municipal para selfies e outros momentos fotográficos. Exige-se a aceitação, integral e sem reservas, do programa da candidatura, o qual apenas será revelado ao comissário 5 minutos antes de cada evento. Requisito obrigatório: três anos de experiência em gestão de redes sociais, na ótica do bajulador. Pagamento em vouchers de entrada nos complexos balneares da Frente Mar.
O bibelô: O Representante da República
Há cargos que a História se encarregou de aniquilar. Na versão portuguesa de império, aos governadores distritais seguiram-se os comissários régios, que se substituíram por altos-comissários e que acabariam rebatizados governadores-gerais. Pelas ilhas portuguesas, adjacentes antes de autónomas, passaram capitães-donatários, governadores civis, governadores militares e ministros da República. Uma longa linhagem de cuidadores da unidade do Estado, que hoje se diluiu num representante instalado num palácio. Haverá maior contradição republicana? A República refugiada num palácio construído pela monarquia. A questão não é pessoal. Nunca foi. O juiz conselheiro Ireneu Barreto desempenha com estoicismo e lealdade a missão que lhe foi confiada. O problema é a função que lhe pedem. O Representante não é embaixador da República, é mandatário do espírito desconfiado do Estado unitário. O sucessivo esvaziamento funcional do cargo poderia sugerir que a sua eliminação pouco acrescentaria, ou até, que a sua existência nos traz influência acrescida ou tratamento privilegiado em Belém. Talvez assim seja. Mas se o cargo não é a essência do problema que aflige as autonomias, não será menos verdade que a sua existência ultrapassa o placebo constitucional. Porque pressupõe uma relação de suspeita, quando deveria ser de cooperação, de vigilância, quando deveria ser de solidariedade, de autoridade, quando deveria ser de partilha de poder. E, com isso, contamina toda a discussão em volta da relação entre o Estado e as Regiões Autónomas.