Retrato de Maria Clementina, possivelmente romantizado, da autoria do gravador Charles Kennedy Burt (1823-1892). Fonte: Ship and shore, in Madeira, Lisbon and the Mediterranean by Colton, Walter, 1797-1851, Domínio público
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Maria Clementina – A Freira Bonita da Madeira

Participante, mais ou menos ativa, da própria mitografia, Maria Clementina levou à cena em vida uma personagem que inspirou viajantes e escritores

Da pena viva de Henry Nelson Coleridge, sobrinho do famoso poeta, em Six Months in the West Indies in 1825, publicado em Nova Iorque , em 1826, a “beautiful nun of Madeira”, Maria Clementina, ganhou fama e foi visitada por turistas e viajantes que a queriam conhecer. Vários foram os autores que escreveram sobre a freira que, bela e infeliz, alimentou a fantasia romântica da literatura anglo-americana.

Filha de Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcelos e Ana Augusta Ornelas, a futura Maria Clementina do Menino Jesus, nasceu em 1803 e morreu a 16 de maio de 1867, com 64 anos, no Funchal. Desde pequena, foi conhecida pela sua beleza e começou a receber ofertas de casamento desde os 13 anos, no entanto, o pai, para aumentar o dote dos filhos, colocou-a no Convento de Santa Clara, tendo tomado votos aos 19. Quando Henry Nelson Coleridge a visita em 1825, já era conhecida como uma das atrações do Convento, a mais bonita rapariga da Madeira, com uma tez branca, brilhante, olhos azuis e cabelos castanhos, longos e macios. Uma compleição que era coisa estranha, comenta Coleridge, nas mulheres madeirenses, que preferiam não usar muito a água para não estragar a pele e criticavam  as senhoras inglesas pela excessiva higiene.

O Convento apresenta as mais “prettiest flowers for your sweetheart's hair” (p. 31) e o visitante pode apreciar também os bonecos em cera feitos pelas freiras. Mas, de facto, o que mais o impressiona, além da beleza de Maria Clementina, é a sua história. Segundo o viajante, esta sofreu desde criança a indiferença da família, sendo tratada como a Cinderela, mas sem fada madrinha que a ajudasse. Colocada muito cedo no convento, Maria Clementina apaixona-se por um oficial português quando a lei das Cortes do Governo Constitucional permite a abertura das portas dos conventos, mas, tendo adoecido no período em que estava destinado o casamento e com a mudança de novo da lei, acaba por ter de voltar ao convento. 

Coleridge consegue falar com a famosa freira através de uma das senhoras inglesas, oferece-lhe violetas e recebe flores dela, acha-a bonita, forte e eloquente, ainda que, acrescenta, fale português com a pronúncia da Madeira que os de Lisboa criticam. Maria Clementina confessa-lhe a dor do coração e Coleridge fica impressionado com o que lhe parece ser a retribuição da sua profunda admiração pela freira, o beijo que lhe dedica através das flores que lhe dá: “She dropped a curtesy which seemed a genuflection to her neighbour, raised a violet behind her service-book to her mouth, held it, looked at it, and kissed it in token of an eternal farewell.” (p. 36)

O capitão do navio chega mesmo a propor tirá-la do convento e planeiam a ação, mas Coleridge pensa melhor, não sabendo como entregá-la ao prometido marido e, ao mesmo tempo, percebe que não pode ficar com a “beautiful nun”, já que tem as mãos bastante ocupadas (p. 37). Fica, assim, Maria Clementina no convento, doce e infeliz: “So God bless thee, and again in very sorrow I say, God bless thee infinitely, sweet and unfortunate Madeiran!” (idem).

O texto de Coleridge é publicado em livro, mas o capítulo da “Beautiful Nun” é editado em diversas revistas inglesas e americanas, gerando curiosidade e também indignação dos protestantes face à triste história das muitas sofredoras que o catolicismo arrogante fechava no convento, como o prova o texto de James Holmes, “Scenes Abroad”, publicado em Montreal, no Literary Garland,  em 1845. A “história melancólica” de Coleridge lembra-lhe as “misericórdias ternas” com que as jovens são tratadas que terminam, segundo Holmes, as suas observações sobre a Madeira.

O relato de Coleridge não passa, de facto, indiferente e, alguns anos mais tarde, James Edward Alexander refere-o quando visita a Madeira, em 1837, tendo a curiosidade de ir ao convento procurar Maria Clementina. Mas, não só James E. Alexander procura a bela freira: ela aparece no texto de William Robert Wilde (1840), Fitch Waterman Taylor (1840) e Lady Emmeline Stuart-Wortley, para dar alguns exemplos. A. A. Harwood, em “The Island of Madeira”(Lady’s Book, and Ladies’American Magazine, Philadelphia, 1840, pp. 269-271), comenta o interesse por Maria Clementina e considera a sua vida uma história várias vezes contada pelos que andam pelo mundo “para a frente e para trás” numa espécie de caça aos leões. Maria Clementina tornou-se, nas palavras do escritor, o capítulo picante da Madeira nos livros dos viajantes, sem que este pensem nos incómodos que criam à freira invadindo o seu sossego e a sua vida privada. Não há, continua, jovem donzela que não queira incorporar nos seus diários a história da infeliz Maria Clementina, contando os seus amores com os olhos cheios de “lágrimas de cebola”.

Os viajantes pagam para ver a sua cela, compram as flores feitas de penas da sua autoria, descrevem-na com cuidado. Mas, por vezes, Maria Clementina fala bem inglês, outras vezes não, para alguns é loira, de olhos azuis, para outros tem os cabelos castanhos escuros, para outros, como James E. Alexander, tem os cabelos castanhos avermelhados. A verdade é que, como Lady Emmeline descobre, é cansativo ser Maria Clementina e estar pronta a receber todos os visitantes do Convento e, naturalmente, as freiras resolvem o problema fazendo conhecer Maria Clementina através de outras irmãs que tomam o seu lugar, nunca desiludindo os viajantes.

Alguns viajantes comentam a coquetteria elegante de Maria Clementina, que, sedutora, faz passar a mão nas grades para tocar a mão dos que a visitam, como escreve James Alexander.  Apesar de, segundo o autor, as freiras de Santa Clara serem muito dignas, não tendo nada a ver com as freiras dos Açores, envolvidas em diversos escândalos. Os turistas enchem o Convento, tanto que Emily Shore, em 1839, refere que a afluência chegava a atingir 200 pessoas, não só apreciando a beleza de Maria Clementina, mas também a de Cândida Luísa, Genoveva, Helena Maria da Exaltação. Algumas das irmãs, segundo os autores, parecem até demasiado mundanas. Nas palavras de Júlio Dantas: a entrada no locutório era “uma espécie de chá das cinco, oferecido pelas freiras na grade grande, a todos os visitantes assíduos”. Os visitantes agradeciam comprando recordações: flores de penas pintadas, flores de cera, compotas e doces.

No livro dedicado às Clarissas, descobre-se que Maria Clementina, que Lady Emmeline diz admiradora de Madame de Stael, aos 50 anos, com modos mais próprios da corte do que do claustro, e vestindo não o burel, mas vestuário requintado, ainda ostentava a sua excecional beleza, gostando de cantar acompanhada pela guitarra. Progressivamente no século XIX, o Convento abre-se a algumas “irregularidades”, com sessões literárias e culturais, nas quais participavam alguns homens de letras. 

Maria Clementina fez várias vezes uso de pedidos de saída para “tomar ares de campo por alguns meses”, tomando vantagem de um sistema sempre mais aberto à permanência por algum tempo fora da clausura quando se justificasse por motivos de saúde ou de família. Escrivã do Convento entre 1859 e 1862, Maria Clementina mantinha-se ativa e os períodos fora do mosteiro, entregue aos desvelos do irmão e da tia, deram-lhe relativa liberdade de movimentos.

Para a literatura, fica o mito de Maria Clementina, personagem que reina nos livros de viagem ingleses, múltipla e solitária, sempre outra e sempre igual, alimentando o imaginário dos autores que a observavam curiosos, mas que dela davam a imagem que criavam.