Marx, o prolet...ariano e o lumpemproletariado
1. Disco: “Distractions”, dos Tindersticks, é um álbum que Stuart Staples não quer que seja um trabalho atribuído ao confinamento. Um disco que confirma o regresso, de certa maneira, a um registo que marca a banda ao longo da sua história. Muito bom.
2. Livro: “O General do Exército Morto”, de Ismail Kadaré, é um livro fundamental. Uma história macabra que leva um general italiano à Albânia onde tenta recolher os restos mortais de soldados italianos mortos, nesse país, na II Grande Guerra. Kadaré foi o primeiro vencedor do Man Booker International Prize e merece ser lido de fio a pavio.
3. Ando um pouco cansado das descontextualizações históricas. Os acontecimentos, o modo de pensar, o momento, são tudo coisas que definem o contexto e, este, o acontecimento. Ortega y Gasset, numa curta frase, resume, de um modo brutal, o que acima vai dito: “Eu sou eu e a minha circunstância”. As circunstâncias determinam o que pensamos e dizemos. Olhar para o passado com as circunstâncias que nos determinam o presente, dá sempre erro.
A maioria das pessoas que se definem como marxistas sabe muito pouco acerca de Karl Marx e nunca leu “O Capital”. É um livro chato, como o são muitos dos livros que versam sobre economia. Conhecem o autor por outros livros que leram e que o explicam. Outros, são marxistas porque sim. Atenção, e antes que venham, também há muitos que nunca leram Adam Smith e se entendem como liberais.
Durante a vida de Marx, só o volume 1 da bíblia marxista viu a luz do dia. Os volumes 2 e 3 são compilados e trabalhados por Engels. As previsões de ambos sobre o capitalismo e o “fim do Estado”, porque o comunismo é isso que visa, revelaram-se completamente erradas.
Não tenho por costume descontextualizar a história, mas perante a arrogância de umas certas personagens que por aí andam, que olham para o marxismo como uma “religião” cheia de humanismo, descontextualizemos:
Tanto Marx como Engels são profundamente “eurocentristas”. Consideram que o centro de tudo é a velha Europa. Esta ideia de superioridade europeia surgiu com o desenvolvimento, quase simultâneo, do capitalismo e das ideias iluministas, a partir do século XVIII, quando os estados europeus começaram a progredir economicamente. É nesse caldo que se desenvolve o pensamento marxista. Um caldo onde, a superioridade branca e europeia, não é sequer questionável. Na igualdade e na fraternidade, nunca foi equacionada a hipótese de esta ser à escala global. O marxismo herda uma certa perspectiva evolucionista tão em moda na época, que o impede de derrubar o eurocentrismo burguês contra o qual se revolta. Não fossem os pais do marxismo dois empertigados burgueses.
O que a maioria das pessoas não sabe é que Marx era racista e anti-semita. Quando os EUA anexaram a Califórnia, após a Guerra Mexicano-Americana, Marx perguntou com todas as letras: “É uma infelicidade que a magnífica Califórnia tenha sido tirada dos mexicanos preguiçosos que não sabiam o que fazer com ela?”
Numa carta a Engels, o co-inventor do marxismo, escreve sobre Ferdinand Lassalle, seu rival político: “Ficou perfeitamente claro para mim que ele, como se pode provar pela sua formação craniana e pelo seu cabelo, descende dos negros que se juntaram ao êxodo de Moisés do Egipto, presumindo que a sua mãe ou avó no lado paterno não se tenham cruzado com um negro. Agora, essa união de judaísmo e germanismo, com uma substância negra básica, deve produzir um produto peculiar.”
Há mais. Em 1887, Paul Lafargue, que era genro de Marx e que tinha sangue negro, foi candidato a um assento no concelho de um distrito de Paris onde existia um jardim zoológico. Numa carta à filha, esposa de Paul, Engels escreveu: “Por ser um negro, um grau mais próximo do resto do reino animal do que o resto de nós, ele é, sem dúvida, o representante mais adequado daquele distrito.”
As opiniões anti-semitas de Marx, não eram segredo. Em 1844, publicou um ensaio intitulado “Sobre a questão judaica”. Nele escreve que a religião dos judeus era uma vigarice e que o seu Deus era o dinheiro. A visão de Marx, que tinha origem judaica, sobre os judeus, era de que eles só poderiam se tornar uma etnia ou cultura emancipada quando deixassem de existir. Disse: “As classes e as raças, fracas demais para dominar as novas condições de vida, devem ceder.”
Marx e Engels definiram grupos pela cor da pele, por pertencerem a etnias, nações ou, até, a classes sociais, enquanto conferem a si próprios uma superioridade inata. Porque fruto da sua época, consideravam a raça como parte das condições naturais da humanidade, ou não fossem darwinianos. As “raças superiores” impulsionariam o desenvolvimento económico e a produtividade, enquanto as “menos dotadas” travariam o desenvolvimento. O pensamento racial marxista reflectia o pensar romântico-nacionalista da época.
E eis-nos chegados ao “lumpemproletariado”, talvez a mais velhaca teoria definida pela dupla. Nas palavras de Engels: “O lumpemproletariado, essa escória de elementos decadentes de todas as classes, que se instala em todas as grandes cidades, é o pior de todos os aliados possíveis. É uma tripulação absolutamente venal, absolutamente descarada. Todo o líder dos trabalhadores que utiliza esses proletários de sarjeta como guardas ou apoios, mostra-se apenas por esta acção um traidor do movimento.” Com isto, os defensores do fim das classes e da ditadura do proletariado, criam uma nova classe que definem como escória.
O lumpemproletariado é um dos termos mais infames do pensamento marxista. “Lumpem” é a palavra alemã para trapo, cancro, ferida, canalha. Conota uma série de “indesejáveis” — o desempregado, a trabalhadora do sexo, o sem-abrigo, o viciado, o criminoso, a mãe solteira. Para Marx e Engels, o “lumpemproletariado” é uma espécie de resíduo abjecto da subjectividade proletária, uma turba desordenada que se opõe ao proletariado politicamente comprometido. Uma “escória social”, esta “massa passivamente a apodrecer”, como Marx e Engels escreveram no Manifesto Comunista.
Goste-se ou não, o marxismo está na origem de algumas das ditaduras mais brutais e desumanas que a humanidade já viu. E a isso não há volta a dar. Bem sei que os seus apoiantes se refugiam sempre na mesma premissa: “ah! mas ali não foi comunismo/socialismo. Agora é que vai ser.” Foi o que aconteceu em relação à Venezuela. Não nos esqueçamos de que o PCP, no seu último Congresso, aprovou uma moção de apoio aos regimes da Coreia do Norte, Cuba, Irão, Síria e à inevitável Venezuela. Aqui, não estamos perante qualquer tipo de descontextualização. Alguém se esquece das palavras do ortodoxo Albano Nunes? “Como escreveu Marx, a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas. O poder material tem de ser derrubado por poder material. (…) Os grandes avanços do século XX estão indissociavelmente ligados à acção revolucionária das forças que têm o marxismo-leninismo como base teórica e ao papel da União Soviética e do campo socialista. As dramáticas derrotas do socialismo não apagam esta realidade.” É isto que alguns marxistas defendem: a violência como modo de impor vontades que mais ninguém quer.
Marx e Engels tinham, sem dúvida, visões racistas, mas é importante não dissociar isso do momento em que viveram e dos preconceitos da época. Eu consigo fazê-lo em relação a todas as figuras que no passado representam coisas que, no presente, não fazem sentido. Tenho pena que, da esquerda, leve sempre com a arrogância de uma superioridade moral que não existe e que já não tenho paciência para aturar.
Embora “cancelar” Marx e Engels?