À grande e à francesa
(Ventura) Terra lançou sobre o Funchal de inícios do século XX um olhar afrancesado
Para aqueles que, como eu, concluíram o secundário antes de 1974, o francês foi língua de aprendizagem obrigatória. Como arquitecto de pouco me serviu – mais tarde só vim a fazer uso do inglês e do espanhol. Suspeito, aliás, que também não serviu aos meus colegas. Nem aos que, nos idos oitentas do século passado, citavam, sem se entenderem a si próprios, os filósofos franceses do desconstrutivismo (teoria de duvidosa aplicação prática na construção civil). No nosso país, o avassalador peso da cultura francesa terminou, pois, na minha geração. Ninguém pensou, todavia, em recentrar-se nos valores da sua própria cultura e, como sempre, as coisas continuaram a vir de fora. Em suma: de “país traduzido do francês em calão”, como um dia escreveu Eça de Queiroz, Portugal passou a país traduzido do inglês em calão.
Vem isto a propósito de um curioso artigo do Heraldo da Madeira que o meu amigo Duarte Mendonça, incansável investigador da história do arquipélago, me fez recentemente chegar às mãos: uma entrevista ao arquitecto Ventura Terra, quando trabalhava no Plano Geral de Melhoramentos do Funchal, corria então o ano de 1913. Formado nas “Beaux-Arts”, em Paris, onde viveu de 1886 a 1896, Terra lançou sobre o Funchal de inícios do século XX um olhar afrancesado. E o que viu foi uma vilória de ruas tortuosas que havia que adaptar à nova era do automóvel e do turismo internacional dando-lhe o brilho da “cidade das luzes”. Pensando em como seria o Funchal “daqui a uns 50 ou 100 anos”, giza então o seu plano. À pergunta do repórter “se tinha já esboçado alguns desenhos”, responde o arquitecto que sim, que tinha já pensado numa ampla e arejada praça ali em frente à Sé, e que “terá essa praça cerca de 100 metros de largo por 300 metros de fundo...”.
Para fazermos uma ideia mais precisa da grandiosidade desta ideia, imaginemos um grande descampado com as seguintes medidas: entre o portal da Sé e a Av. Zarco, o comprimento de um campo de futebol (100 metros), entre a Av. do Mar e a Rua da Carreira, o comprimento de três campos de futebol (300 metros). Assim teria sido a arejada praça que, em área, não ficaria longe do Terreiro do Paço... Na sua versão final, o Plano de Melhoramentos acabou por não contemplar esta megalómana proposta, nem a ideia de cobrir a ribeira de Santa Luzia transformando-a numa avenida (coisa que ainda hoje, só de pensar, nos arrepia); nem “o grande palácio, como o há em Nice”, a ser construído sobre o mar (onde estaria hoje?...); nem o parque oriental e ocidental da cidade, dois jardins decalcados do Bois de Boulogne e do Bois de Vincennes em Paris. Tudo à grande e à francesa! – curiosa expressão que dizem ter nascido em 1807, ano em que o general Junot, instalado no palácio do Barão de Quintela, ao Chiado, se pavoneava com estrondo em uniforme de gala pelas ruas Lisboa, para gáudio dos basbaques.