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Dois extremos, uma questão

Acompanhei as eleições presidenciais mas, praticamente sabendo de antemão quem seria o vencedor, deixei-me levar pela corrente e concentrei-me na luta entre os primeiros dos últimos,

como se estivéssemos perante uma corrida com direito a pódio de três alturas. Notícia após notícia, entrevista após entrevista, debate após debate, tudo acabava no mesmo: só porrada no André Ventura.

Quanto aos debates televisivos em específico, e mesmo entre candidatos com experiência política para dar e vender, não houve um que não caísse na esparrela: redução do debate à discussão de três ou quatro assuntos altamente polémicos e populistas que exploram o medo,

puxam a emoção, mas, acima de tudo, que captam a atenção de quem assiste... Em bom rigor,

nestas eleições não houve debate sério, capaz de esclarecer os ouvintes relativamente ao que

seria de esperar de cada candidato caso vencesse as eleições. Qual seria o seu papel na

pandemia? O que é que esperavam quanto ao futuro do caquético projeto europeu e qual o papel de Portugal nele? Qual o seu contributo para preparar a forte crise que se avizinha? O que esperam da relação com o Governo? Será que as propostas ficaram reféns dos respetivos programas políticos? É certo que o Presidente da República não é Governo, mas seguramente caber-lhe-á um papel importante a desempenhar no meio disto tudo. E o que dizer do novo formato tripartido de debate? Parece que a figura do moderador, isento e imparcial, é coisa do passado.

Imediatamente após cada digladiação chegavam os comentadores e, uma vez mais, de cima a baixo, porrada no André Ventura.

A concentração nesta candidatura foi tanta que, pela primeira vez na minha já não tão curta vida, assisti a debates cuja discussão se centrou nas ideias do candidato ausente, como que se

de um ser omnipresente se tratasse. Que não restem dúvidas: nos dias que correm a disputa é pela atenção das pessoas que, em tempo de pandemia, é alcançada através dos meios de comunicação social e das redes sociais. Perfeitamente conscientes disto, Ventura e o seu partido certamente agradecem toda a atenção que abundantemente lhes foi concedida.

Bem sei que os resultados das presidenciais são especiais, mas o que se fez nestas eleições foi brincar com o fogo: o extremismo não se combate com populismo e, a julgar pelos resultados, também não se combate com batom; em Estado de Direito Democrático a solução não pode ser a de proibir só porque incomoda; se não sabemos lutar sumo, é melhor resistir à tentação de ir para a lama; para arbitrar de forma competente é preciso, desde logo, ser imparcial e resistir à tentação de ser justiceiro; as correntes extremistas alimentam-se dos problemas que foram abandonados pelos ditos partidos tradicionais, pelo que o primeiro passo para inverter o seu crescimento tem de ser o de abordar tais questões – minorias étnicas, combate à corrupção, concretização da justiça, mais e melhor eficácia e fiscalização na distribuição dos apoios sociais, entre tantos outros – de forma clara e profunda, sem receios nem preconceitos; a tendência mantém-se: a população está cada vez mais descrente no sistema político atual e urge restabelecer a confiança perdida, demostrando que uma democracia diversa, tolerante e integradora continua, com todos os seus defeitos, a ser o melhor regime à data. Caso contrário, nem o céu será limite para o extremismo em Portugal a médio prazo, seja ele de direita ou de esquerda. Note-se que o primeiro passo, o da sua normalização, já foi dado nos Açores. Será mesmo isto que queremos para o nosso futuro?

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