Crónicas

Sem coisas banais

São projectos pequenos, talvez me falte o golpe de asa, mas este ano mostrou-me que, em tempos agitados, mais vale viver cada momento

A manhã fez-se de sol num sábado daqueles bons, daqueles que nos abraçam por estarmos de folga. Havia gente nas esplanadas e a fila no supermercado estava grande, parece quase um fim de semana normal não fossem as máscaras, não fosse ter perdido a memória de como vivíamos antes do vírus, nesse tempo primitivo em que se ia a qualquer lugar sem pensar nas distâncias. E dei por mim a matutar no momento em que se declarar o fim da pandemia, no que vou fazer depois quando acabar esta espécie de liberdade condicional.

Reparei que não tenho um plano, sou mais ou menos como o governo, cansa-me planear, mas talvez fosse boa ideia ter um, saber exactamente o que quero fazer quando tudo for permitido. Sei que tenho saudades dos amigos que não vejo a um ano e que até me faz falta aquele frenesim de arrumar a mala para umas férias de oito dias em Lisboa. E combinar uns almoços fora, ir ao teatro e ficar à conversa depois no jantar, naquela alegria de quem não se vê todos os dias.

Ou arriscar uma viagem país adentro, com reserva em alojamentos modestos, a ouvir música na rádio, enquanto, no banco de trás, se tira à sorte para saber quem vai a meio. Lembro-me que o orçamento das últimas férias não deu para mais do que isso e lembro-me de ter cruzado a fronteira a caminho de Badajoz tão entusiasmada por estar no estrangeiro. Eu não sou boa a planear e sou capaz de me contentar com um jantar num restaurante de beira de estrada, daqueles que, definitivamente, não ficam bem no Instagram.

Não é que não tenha sonhos em grande, gostava de ir a todos os sítios bonitos, da moda, mas tenho este defeito de aproveitar o que me calha. Se não for Nova Iorque, seja Lisboa; se não são as Caraíbas, venha o Porto Santo ou uma praia fluvial do Alqueva. Não sou menos feliz por isso e, na verdade, o que quero mesmo é ter de novo a possibilidade de viver essa existência normal, banal, de trabalho e folga ao fim de semana e férias uma vez ao ano.

São projectos pequenos, talvez me falte o golpe de asa, mas este ano mostrou-me que, em tempos agitados, mais vale viver cada momento o que melhor que se sabe. A manhã começou ensolarada e eu estava na rua, fui às compras e à farmácia comprar máscaras, passei pela tabacaria e comprei um jornal, as esplanadas estavam cheias, vi gente nos cabeleireiros e nas lojas, havia uma quase normalidade. E fiquei feliz por isso, mas até para mim, que aproveito tudo o que me cabe, até para mim esta felicidade é estranha, é resultado destes meses todos de pandemia.

Se o meu pai fosse vivo, teríamos falado disto, do ano que passou e do que me ele disse, à porta do hospital, num dia em fomos a uma consulta: “dizem que vão limitar a entrada de gente no supermercado”. Eu respondi que estava maluco, eram boatos. E depois foi o que se viu, esta vida sem as coisas banais.