O bom, o mau e a cambalhota
A morte de Marcelino da Mata é, apenas, mais uma tentativa de quem insiste em fazer da história de Portugal um convite à autoflagelação nacional
Em ano bieleitoral, e despachadas as Presidenciais, o municipalismo tomou de assalto a Região. Do Santo da Serra, veio um pedido de asfaltagem da Serra das Funduras. Uma espécie de sequela do Caminho das Ginjas, que ameaça virar moda. Em Santa Cruz, o visionário presidente decidiu comprar, não um, mas dois radares para o aeroporto. No Porto Santo, sonhou-se com um ferry movido a hidrogénio. Para os lados de São Martinho, distribuíram-se dois mil sonhos pelas escolas da freguesia. No Porto Moniz, exigiu-se um recolher obrigatório, com horário individual e, provavelmente, inspirado no Almanaque Borda d’Água. A campanha para as autárquicas já começou. Não só começou mal, como mal começou.
O bom: Perseverance
Regressámos ao planeta vermelho. Em boa verdade, nunca de lá saímos. Aterrámos em Marte, em 1971, e, desde então, repetimos a façanha por várias vezes. A americana Perseverance foi a mais recente. Muitas outras se seguirão. E ainda bem que assim é. Persistimos nessa curiosidade, apesar do custo estratosférico – cerca de 3 biliões de dólares, só para esta missão – e apesar dos tempos negros em que vivemos. A história da exploração do espaço não é feita de sucesso, mas de persistência. O regresso a Marte não se faz apesar do presente, faz-se pelo futuro. Faz-se porque a pandemia não nos entorpece o espírito, aguça-o. Mas porquê Marte? Por uma razão principal. Porque sabemos que a água já correu na sua superfície e se lá encontrarmos fósseis de vida extinta, poderemos provar que o desenvolvimento da vida é um fenómeno generalizado no universo. Isso pode significar que os fenómenos biológicos que levam à vida não são um acaso, mas a regra. Pode estar em Marte a resposta à nossa singularidade. Questionar o regresso à exploração espacial é perguntar a um alpinista porque insiste em escalar montanhas. A resposta é simples. Porque elas estão lá.
O mau: O recontar da História
A história que nos orgulha também nos persegue. Foi assim no cancelado Museu das Descobertas, na vandalização imbecil da estátua do Padre António Vieira ou na temerária proposta de demolição do Padrão dos Descobrimentos. A morte de Marcelino da Mata é, apenas, mais uma tentativa de quem insiste em fazer da história de Portugal um convite à autoflagelação nacional. Esse é o problema de dissecar a história com o bisturi, justiceiro e arrogante, dos nossos dias. O passado tornar-se-á, todo ele, culpa. Marcelino merece mais do que ser dilacerado entre a condição de herói nacional e de abominável criminoso de guerra. Quem o glorifica, esquece-se que foi usado como acessório de propaganda do regime. Quem o acusa, aponta também o dedo aos milhares de antigos combatentes que guardam, em silêncio, a crueldade da guerra. Marcelino e os seus camaradas são de outro tempo, que não o nosso, e serviram outro Portugal, que já não existe. Essa distância histórica exige respeito, proíbe o julgamento moral e desaconselha a retóricas patrioteiras. Portugal é o que foi. Aceitar essa inevitabilidade histórica é perceber que a história não pode ser recontada a partir das trincheiras em que, hoje, nos dividimos. Julgar os homens do passado, à lupa do presente, pode garantir condenação, mas não oferece penitência. E quem, ainda assim, sentir vontade de ajustar contas com o passado, tem de explicar até onde vai o julgamento. Sob pena de acusarmos D. Afonso Henriques de violência doméstica sobre a mãe, Gonçalves Zarco de um atentado ambiental contra a Laurissilva e, porque não, considerar a devolução aos árabes de metade do país.
A cambalhota: O PS e a Lei das Finanças Regionais
Passou despercebida. Arrumada numa nota de rodapé de jornal, como que envergonhada pelo impulso que lhe deu azo. A maior cambalhota política da década. Os socialistas madeirenses reconheceram que o Estado entrega mais verbas aos Açores do que à Madeira. Não satisfeitos, acrescentaram que essa diferenciação não tem qualquer fundamento. E assim, num ápice que desafia a coerência, apagaram-se mais de três décadas de discurso político. O PS, que sempre encontrou razão para o benefício açoriano, contorcionou-se para reconhecer o que era óbvio. E ainda encontrou folga na espinha dorsal para encontrar injustiça na discriminação entre ilhéus, fazendo de conta que não foram os socialistas que, durante mais tempo, governaram o País e, nos últimos 23 anos, os Açores. Mas não ficaram por aqui. Se o reconhecimento do privilégio açoriano foi a cambalhota, a manobra mais arrojada do PS estava reservada para a proposta de revisão da Lei das Finanças das Regiões Autónomas. O aumento dos limites de endividamento da Região para complementar, entre outros, projetos com financiamento europeu. Depois da cambalhota, um salto mortal encarpado à retaguarda. A dívida regional, anos a fio diabolizada pelo PS, a certa altura imortalizada em livro, emerge agora, triunfante, como solução socialista para a sustentabilidade das finanças regionais. O que relaxa na azáfama do PS, é a ligeireza com que os próprios a encaram. O chefe parlamentar e o presidente socialista não marcaram presença na última reunião da comissão parlamentar, onde serão discutidas as propostas de revisão da lei. O que espanta não é a ausência da liderança socialista, mas a conclusão assumida de que a sua presença seria irrelevante.