Júlia de Atouguia de França Neto nasceu no Funchal, em 1825, na aristocrática família Neto, na ilha desde os tempos da povoação. Filha primogénita de Jaime António de França Neto, político, e de D. Carolina Engrácia da Cunha Telo, pintora amadora, posto que de merecimento, correndo haver sido premiada numa exposição em Roma em 1845. Era, por via materna, neta do segundo conde da Cunha, e bisneta de D. Pedro Álvares da Cunha, Governador Geral da Madeira, e sobrinha-neta do renomado diplomata D. Luís da Cunha.
Para traçar este retrato socorremo-nos, fundamentalmente, do excelente trabalho de recolha efetuado por Rui Magno Pinto, em particular para o Dicionário Enciclopédico da Madeira. A nossa história começa, assim, em 1832, quando a pequena Júlia, contando então 7 anos, parte com a família para um Grand Tour por vários países europeus, vindo a estabelecer-se em Itália. Aos 11 anos encontramo-la pela primeira vez ligada à música: frequentava então aulas de canto em Roma, provavelmente com Carolina de Santis, sócia agregada da Accademia Nazionale di Santa Cecilia. Em 1840 a família muda-se para Genebra, e Júlia de França Neto, já adolescente, prossegue o ensino musical no Conservatório de música daquela cidade, estudando piano com Julie Raffard, canto com Francisco Bonoldi e harmonia com Nathan Bloc, que dirigiu daquele estabelecimento de ensino entre 1835 e 1849. Após um percurso académico sucessivamente condecorado naquela instituição, terá obtido, em 1846, os primeiros prémios nas disciplinas de Piano e Canto, tendo participado na apresentação pública anual dos alunos do Conservatório de Música de Genebra, realizada a 8 de setembro de 1845, com a apresentação da “Chanson du Saule” da ópera Otelo, de Gioacchino Rossini, sendo então reconhecida pelo seu excelente método de canto. Estreia-se no ano seguinte, num concerto organizado por Bonoldi, interpretando uma ária da ópera Lucia di Lammermoor, de Gaetano Donizetti. Em 1849 teria já concluído o curso, uma vez que neste ano o seu nome já não consta da documentação do Conservatório de Genebra.
Anos mais tarde encontramo-la em Paris, prosseguiu a sua formação musical, a título particular, tendo por mestres Jean-Antoine-Just Géraldy, baixo e compositor, Fiocchi, cantor e professor formado no método do castrato Girolamo Crescentini, e Caçares, com quem terá aprendido repertório musical espanhol e, eventualmente, guitarra. Participa nesta cidade como intérprete em vários saraus privados, organizados por senhoras da aristocracia parisiense, em solenidades sacras e em eventos de beneficência. Na conhecida estância de Inverno de Pau, nos Pirinéus Atlânticos, que meio século mais tarde viria a ser frequentada, também, pela escritora Luzia, que aí escreve parte da sua obra, canta num concerto organizado pelo violinista Louis Eller, então sediado naquela cidade. Apresenta-se igualmente em diversas récitas da Société Philarmonique de Tarbes. O seu último concerto em França, ao que tudo indica, terá ocorrido a 10 de junho de 1854, em Saint-Germain-en-Laye, tendo então interpretado dois excertos de óperas de Rossini, a cavatina “Una voce poco fa”, do Barbeiro de Sevilha, e o rondó “Nacqui all alfano e al pianto” de La Cenerontela - A Cinderela - – assim como um dueto com o barítono Morelli.
A família terá depois residido em Lisboa, no Palácio do Marquês de Sá da Bandeira, às Picoas. Durante a permanência na capital, Júlia de França Neto ter-se-á apresentado frequentemente em iniciativas musicais privadas e semipúblicas do 2.º conde de Farrobo, Joaquim Pedro Quintela, nas quais terá privado com D. Fernando II. Joaquim Pedro Quintela, antepassado ou tio do “Gato Fedorento” Zé Diogo Quintela, viria a ser governador civil do Funchal entre 1860 e 1862, tendo nessa época Júlia de França Neto co-organizado com a condessa vários concertos beneméritos no Funchal, no Palácio de São Lourenço.
Em 1854 a família regressa à Madeira, encontrando um arquipélago madeirense profundamente assolado por uma crise agrícola e comercial, agravada pela devastação vinícola provocada pela mangra da vinha, por intempéries, agravadas depois pelas epidemias de cólera e febre-amarela. Tocada pela miséria que afetava os mais pobres, os órfãos e os enfermos, Júlia de França Neto organiza uma série de concertos de beneficência, vindo a realizar dez récitas entre 1854 e 1861, participando ainda noutros eventos criados com a mesma finalidade. Os concertos decorrem na Escola Lancasteriana, gerida pelas senhoras Phelps, no salão da Escola Central e nas salas do Palácio de São Lourenço. Os lucros destas récitas foram destinados às instituições de beneficência madeirenses, como o Asilo de Mendicidade do Funchal, a Misericórdia e o Convento das Capuchas, tendo ainda organizado um concerto em fevereiro de 1858 na sala grande do palácio, cuja receita reverteu para auxílio das vítimas da febre-amarela em Lisboa. Nestes concertos, a cantora interpretou excertos de óperas de Gioacchino Rossini, Vincenzo Bellini, Gaetano Donizetti, e Giuseppe Verdi - incluíndo a “Ah Fors’è lui – Sempre libera” de La Traviata, a Ave Maria de Luigi Cherubini e vários boleros, nos quais se acompanhou à guitarra. Entre as artistas que então participaram nestas récitas, podemos citar Maria Paula Klinghöffer Rêgo, e, piano, harpa e machete, Carlota Cabral, no piano, Maria Virgínia de Sousa, piano, Júlia Araújo de Ornelas, harpa e piano, Carolina Dias de Almeida, canto, a própria condessa de Farrobo, no canto, a sra. Mascarenhas, harpa e Amélia Augusta (?) de Azevedo, no machete. Nos concertos colaboravam também outras mulheres notáveis da cultura madeirense, como Matilde Sauvayre da Câmara, e outras notáveis beneméritas, como Ester Leonor Ferraz, Palmira Lomelino Pereira e Eugénia Rêgo Pereira, as quais, com o seu préstimo, perpetuaram o modelo de benefício musical e artístico de caridade até à segunda metade do séc. XX.
A 20 de junho de 1864, parte para Lisboa, vindo a apresentar-se como cantora lírica naquela cidade, frequentando as soirées da sociedade lisboeta, entre as quais as organizadas pelo 7.º marquês da Fronteira, convivendo e granjeando a admiração dos reis D. Fernando e D. Luís, tidos como grandes apreciadores do seu talento musical. Em 1866 já se encontrava na Madeira, participando a 27 de janeiro num concerto de beneficência destinado ao Asilo de Mendicidade e Órfãos, onde canta com o virtuoso violinista Agostino Robbio os duetos “Per piacer alla signora” da ópera O Turco em Itália, de Rossini, e o “Grand Dueto” da ópera L’Elisire de Amore, de Donizetti. Em janeiro de 1869, toma parte, juntamente com Platão de Vakcel, que a celebra como “glória musical da Madeira e um dos talentos que mais honravam Portugal”, em dois concertos em benefício ao Asilo de Mendicidade e Órfãos, por pedido da própria instituição. A 18 de maio de 1870, integra o elenco que apresentou a comédia La Nièce no Teatro Esperança, no espetáculo em benefício do Asilo de Mendicidade. Aos seus concertos no Funchal assistiram várias figuras da realeza europeia, entre as quais a duquesa de Bragança, o futuro rei D. Luís, então príncipe da Beira, a imperatriz Elizabeth da Áustria, a célebre Sissi, o arquiduque Maximiliano, futuro imperador do México, assim como a sua infeliz esposa, Carlota da Bélgica. Embora não se encontrem referências à sua atividade musical em eventos públicos após esta data, terá continuado a realizar saraus artísticos na sua residência.
Júlia de França Neto foi muito elogiada na imprensa parisiense e madeirense pela sua capacidade vocal notável e pelo seu conhecimento da arte do canto, que a colocava “entre os artistas da bela escola”. O seu extenso âmbito vocal, e a aptidão para a execução de obras musicais para soprano ou contralto, Explicam-se pelo uso de uma técnica particular de canto, ainda em voga no século XIX, assente no recurso à alternância entre timbres e tessituras. Júlia de França Neto foi, assim, capaz de interpretar tanto como soprano, como como meio-soprano/contralto, possibilitando-lhe a execução de excertos célebres do repertório operático, de outro modo inacessíveis às audiências madeirenses. Na fase final da sua carreira musical, ter-se-á notabilizado como contralto, por um lado devido ao abaixamento da tessitura vocal natural em cantoras daquela idade, e, por outro, da introdução em Portugal de transformações na prática e pedagogia do canto lírico, que favoreciam registos mais robustos e dramáticos da voz.
Júlia de França Neto notabilizou-se, ainda, como produtora vinícola e agrícola, com propriedades em Câmara de Lobos, no Estreito, Quinta Grande, Campanário, São Martinho e Santo António, no Funchal, na sua maioria por si colonizadas, pelos seus parceiros agrícolas e pelos herdeiros destes últimos. Entre as suas propriedades destacam-se a Fajã dos Padres e o calhau da Lapa, no Campanário, e a Quinta do Salão, no Estreito de Câmara de Lobos. Em todas elas Júlia de França Neto terá incentivado eficientemente o cultivo de cana-de-açúcar, de verduras e árvores de fruto, e a produção de vinho. Foi ainda a responsável, em 1892, pelo restauro da capela dos Anjos, nos Canhas, então sua propriedade.
Faleceu a 14 de maio de 1903, aos 77 anos, na sua residência à rua dos Netos, de hemorragia cerebral, vindo a ser sepultada no antigo cemitério das Angústias, na parte superior do atual Parque de Santa Catarina.