Crónicas

Uma certa fadiga

Já levamos quase um ano nisto: um país pequeno demais, globalizado em sofrimento e atraso pela pandemia. Confina, desconfina, o pico, o planalto, e o relax estival que não podia esperar, mas vem o pico outra vez, depois a longa espera até o escândalo dos óbitos, então os políticos ouviram os cientistas, e toca a confinar de novo: agora deitam-se sortes para quando e como desconfinar outra vez. Claro, vem aí a Páscoa, assunto de religião, dizem os clérigos da cidadania que não querem cá misturas, mas não deixa de ser sintomático que seja o nosso Primeiro — republicano, laico e socialista — a anunciar que não haverá Páscoa para ninguém! Óbvio: a dramática récita “Salvar o Natal”, tão cedo não será esquecida, ainda sofremos as amargas sequelas, e agora, apesar dos números esperançosos e da pressão da economia em falência a rondar os (seus) cuidados intensivos, já ninguém ousa dizer que é preciso “salvar a Páscoa”! Antes pelo contrário: cá como lá, sabe-se que a quaresma vai ser mesmo de quarentena e penitência convivial, e agora já são os “pais da pátria” que esbracejam determinação, a vacina é (ainda) uma luz bruxuleante, há que não “baixar a guarda”, dizem eles, súbitos aprendizes da gíria militar, o “inimigo” não dá tréguas, o vírus é “traiçoeiro”, e assim por diante...

E aterrámos então na famosa “fadiga pandémica”.

Se pensarmos os dias e os anos no curso breve da vida que nos coube por entre picos e planaltos — a vida viva, a morte adiada —, veremos que há uma constelação vocabular que carateriza cada época: palavras que ficam como testemunho e memória. A experiência desta pandemia trouxe ao linguajar quotidiano novos termos, conceitos, expressões, obrigou-nos a novos “jogos de linguagem”, para lembrar a famosa expressão de Wittgenstein, que também declarava: “Os limites da tua linguagem são os limites do teu mundo”. Nada mais verdadeiro. Confinar e webinar, por exemplo, vieram para ficar, e exprimem globalmente uma nova experiência. Toda uma panóplia de especialistas covid entrou pelas nossas salas adentro e, sem nos darmos conta, através da logorreia quotidiana de comentadores e espetadores participando em rede deste contágio linguístico-viral, eis que vamos ficando cada mais confinados mentalmente. Talvez seja (também) isso a “fadiga pandémica”: privados dos convívios e dos restaurantes, da vida livre e da festa, a vivência do tempo numa linearidade informe e penosa, sem o júbilo de poder abraçar alguém ou celebrar um qualquer intervalo mais festivo, com as distrações reduzidas a mais do mesmo todos os dias, fartos de séries e de verdadeiros chouriços de informação, com o distanciamento feito virtude covídica, o dia a dia sem contrastes que rasurem a monotonia da solidão, cada vez mais empurrados para uma cerca emocional que nada tem a ver com a alegria e o sentido da vida — eis o que, vividamente, nos aproxima desse verdadeiro achado semântico-covidiano da “fadiga pandémica”, um “jogo de linguagem” que os novos “combatentes sanitários” adoram exercitar, evidenciando um discurso cada vez mais confinado: vida limitada, linguagem finita. Na verdade, após a regra, a obrigação e a clausura, o último refúgio é ficarmos a habitar a nossa própria cabeça. E, como se sabe, a mente não dá descanso. Mas, asseguram, confinar é preciso, e a governança pátria nem um “postigo” — verdadeira pérola da legislação pandémica – deixou aberto: até os livros tiveram de confinar!

Diz quem sabe: ler pode ser uma atividade perigosa, embora não por causa do vírus...

Orwell, onde é que já vimos este filme?