Imaginemos por momentos ser possível fazer roteiros e visitas de estudo viajando através do tempo. Imaginemos um dispositivo temporal que nos transportasse a determinadas coordenadas espaço-tempo. Há uma miríade de situações por imaginar, e todos, infelizmente, sabemos que a ficção científica demora a deixar de ser ficção, sobretudo no que respeita às viagens do tempo.
No entanto, nem tudo está perdido, há diferentes formas de chegarmos a esse passado longínquo. As narrativas, os jornais antigos, a recriação imagética desses momentos são os melhores dispositivos que temos em mãos. E serão, talvez, os melhores e, para já, os possíveis.
Vamos, então, contar a história de Beatriz de Barros Lima, situando-nos no ano de 1913, mais precisamente, no dia 8 de abril. Semanas antes, a 22 de março, aportava à Madeira a Tuna da Universidade de Coimbra, permanecendo na Ilha, segundo os jornais da época, até 3 de abril. A Tuna de Coimbra realizou várias excursões pela Ilha, participando em festas, saraus, e até num jogo de futebol. Foram realizadas três receções à comitiva, duas delas organizadas pelos Viscondes Geraz do Lima, e por sua filha Beatriz Barros Lima, presidente honorária da Tuna da Madeira. Aqui se deixa o relato da terceira soirée organizada por Beatriz Barros Lima, pela pena da brilhante escritora Luzia, sua prima legítima:
Festa em casa dos meus parentes L. Terceira soirée à Tuna, escandaloso seria faltar pela terceira vez. Fui, num supremo tédio, num supremo desconsolo, farta da Tuna e dos… Tunos, antes mesmo de os ter visto. A assistência era pitoresca e variada. (..) Embirrei com (...) com o laço vermelho da Berta,[Beatriz de Barros Lima] emblema dos seus triunfos presidenciais. (...) Os estudantes pareceram-me vulgaríssimos, excetuando um sobrinho do Antero de Quental, interessante, cheio de espírito com quem o meu tio teve uma divertida, brilhante escaramuça.
Muitos flirts pelos cantos das salas. Flirtava Berta, grave e séria, com o Sr. C. C., presidente da Tuna, ambos de laço encarnado, ambos levemente conselheirais, falando de papo. Flirtava a menina M., com o seu ar precioso de beauté du nord. Flirtava Ester B., muito fresca, muito corada; flirtava a mignonne Mrs. G., que tem três filhos e parece um bébé… Doce ocupação, que jamais cansa, flirt, bagatela, suave engano do amor! Queria ser nova e não ter cuidados, saudades que doem tanto, para flirtar como as outras! Flirt presidencial, de laço vermelho, flirt espirituoso, flirt romântico… um qualquer que me fizesse parecer curtas e agradáveis aquelas horas, no canto de um sofá ou no canto discreto de uma janela, enquanto o meu tio, le beau vicomte, tomava posições de Apolo, e a Connie arrastava languidamente a cauda de moiré Saxe.
Vim para casa depois da uma hora de noite, quando a festa estava no seu apogeu e os parceiros de flirt julgavam apenas começada a sua doce partida…
E eis Beatriz de Barros Lima, presidente Associação de Estudantes do Liceu Nacional do Funchal, nos seus 28 anos, com o seu grande laço vermelho num flirt presidencial com o Sr. C.C., o que corresponde às iniciais de António Correia Caldeira Coelho, delegado então da Tuna de Coimbra. Um instante de descontração capturado pela sua prima Luísa Grande Lomelino, com a sua habitual ironia e falta de paciência para festas deste género.
Todavia há muitíssimo mais em Beatriz de Barros Lima do que um flirt à primeira vista pode mostrar.
Voltemos ao princípio. 28 anos antes, no dia 3 de julho de 1884, Beatriz nascia, filha de Luís do Rêgo Barreto de Barros Lima de Azevedo Araújo e Gama e de D. Ana Sofia Lomelino, futuros viscondes de Geraz do Lima, título nobiliárquico criado por D. Maria II em 30 de maio de 1835, e renovado por D. Carlos em 1898.
É, pois, no meio aristocrata funchalense que vive Beatriz de Barros Lima. Não se pense, porém, que a sua vida é acomodada, pois apesar de ter gozado das mordomias da sua classe, teve uma importante ação cívica não só como dirigente estudantil, mas sobretudo como enfermeira da Cruz Vermelha. E foi por esta ligação que se destacou, e ganhou um lugar entre as mulheres ilustres do Funchal. À sua ligação à Cruz Vermelha não é alheio, certamente, o facto do pai ter sido o primeiro presidente daquela instituição na Ilha da Madeira, o que terá favorecido o seu ingresso no corpo de enfermeiras da instituição.
A Beatriz de Barros Lima de 1913, a dos flirts, estava longe de imaginar que três anos depois, com 31 anos completos, iria assistir ao segundo maior ataque de sempre ao Funchal por uma potência estrangeira. 350 anos depois do ataque do pirata huguenote francês Pierre Bertrand de Montluc, no dia 3 de dezembro de 1916, um submarino alemão U-38, comandado por Max Valentiner, lançava aquele que foi o primeiro ataque por mar contra a cidade do Funchal. Um segundo ataque aconteceria poucos dias depois, a 16 de dezembro, embora não deixando estragos. Um terceiro e último ataque, em 1917, seria o que mais estragos causaria à cidade, deixando a triste cifra de 5 mortos e 30 feridos, também ele realizado por um submarino alemão.
O ataque de Max Valentiner foi bem-sucedido, conseguindo afundar três barcos aliados: a canhoeira francesa “Surprise”, o porta-submarinos, também ele francês, “Kanguroo” e o navio inglês lança cabos, o “Dácia”. Neste ataque morreram 33 dos tripulantes e 8 trabalhadores da empresa Blandy.
A Delegação da Cruz Vermelha teve um papel crucial durante estes três ataques. Num primeiro momento, a família Geraz do Lima participou no socorro aos feridos, em diferentes circunstâncias. O visconde, no papel de presidente, coordenou o serviço da ambulância. E Beatriz de Barros Lima, bem como a sua mãe, a viscondessa, na qualidade de “Damas da Cruz Vermelha”, participaram no socorro direto aos feridos. Embora não tenhamos encontrado uma descrição em primeira mão, podemos imaginar, no meio do pânico da cidade, Beatriz de Barros Lima sem o seu lenço vermelho, sem o flirt, mas toda ela coragem, enérgica a socorrer a população atingida, perante o perigo que vindo de sob a ondas do mar.
Participa, com a sua mãe, no cortejo fúnebre de um soldado francês morto no ataque, em representação da Cruz Vermelha. Parece-nos provável também que, apesar de disso não termos encontrado referência, tenha igualmente participado no socorro das vítimas do terceiro ataque ao Funchal, uma vez que todos os feridos se dirigiam à sede, então localizada na rua dos Netos, onde também se encontrava, e onde ainda hoje existe, o Palacete Geraz do Lima.
Por todo o auxílio prestado, pela filantropia e caridade demonstradas em tão sombrios tempos de crise, como Dama da Cruz Vermelha, vem a ser agraciada em 29 de julho de 1919 com a distinção do oficialato da Torre e Espada.
Imaginamos que talvez, a partir desse dia, ao lado do laço vermelho, ostentasse, orgulhosamente, tão brilhantes insígnias.
Beatriz de Barros Lima vem a morrer com a avançada idade de 89 anos, a 1 de julho de 1973, na sua residência, hoje infelizmente ao abandono. A notícia da sua morte resume o que foi toda a sua vida: a ação caritativa e filantrópica, a sua imagem de “figura destacada da sociedade do seu tempo”. Está sepultada no cemitério das Angústias, no jazigo da família.