Era uma vez...
No espaço que vim conhecer a experiência vive-se em tribo. Não no sentido atrasado do termo mas na profundidade da construção de um grupo (...)
Escrevo-vos da Praia de Bruce, na ilha de Bubaque. Uma entre as 88 que compõem o arquipélago das Bijagós, ao largo da Guiné Bissau em pleno Oceano Atlântico. Um paraíso escondido do Mundo, onde tudo se encontra por fazer mas que ao mesmo tempo nos remete para uma paz e uma espiritualidade sem paralelo. Sairemos desta pandemia todos diferentes. Teremos forçosamente por isso, de encontrar em nós razões e formas de nos libertarmos do que nos carrega para baixo, do que nos pesa. Preencher a nossa alma com momentos de cumplicidade com a natureza, trabalhar a nossa mente e o nosso corpo. Nas ilhas (onde me encontro), na interação com os locais, percebo que (em Portugal) nos desgastamos numa discussão em volta do racismo, de quem teve a culpa e de quem deve pedir desculpa, quando há tanto por fazer em comunidade. Uns pelos outros.
No espaço que vim conhecer a experiência vive-se em tribo. Não no sentido atrasado do termo mas na profundidade da construção de um grupo, onde todos se protegem e todos contribuem para a felicidade de cada um. É por isso que à chegada do pequeno grupo nos atribuem uma marca da nossa tribo. Que ficará para a vida. Somos divididos em pequenas cabanas cheias de história, contada pelas peças de arte que as compõem e que nos remetem para outros tempos, mas que curiosamente se continuam por aqui a esculpir. Em algumas sentimos a água do mar a passar por baixo. O barulho é o dos pássaros. Silêncio e nada mais.
Acordamos às 07h com o galo a cantar e pouco depois já estamos a caminhar pela praia até uma cabana onde nos esperam luvas de boxe. É tempo de trabalhar o corpo.
Exercícios de flexibilidade aquecem-nos para um momento de aprendizagem. Num ringue imaginário sobre pedras e água ajustamos estratégias e posições de defesa e ataque. Esquerdas, direitas, joelhos... Somos incentivados a definir posturas e a ganhar confiança interior que num ápice se transformam em prazer. Circunstâncias em que nos sentimos mais fortes e em que nos é ensinado que um movimento mal feito nos produz uma dor que nos faz corrigir de imediato. Em que percebemos que são as nossas dinâmicas que determinam o nosso sucesso ou insucesso. Salta-se à corda e carrega-se o nosso colega aos ombros ( e depois somos nós carregados ). Quem está mais forte apoia o mais fraco. O objectivo é comum. Afinal de contas devia ser assim em tudo na vida. No fim é tempo de dar um mergulho e de relaxar um pouco a olhar para o mar. A água não deve estar a menos de 27/28 graus mas ainda assim dá para refrescar o corpo e libertar os sentidos. Voltamos para o quarto para um banho rápido que o pequeno almoço está na mesa.
Começamos com um côco bem fresco que aprendemos a partir, para beber a água e comer a fruta. Sumo de cabaceira, ovos e um leque de produtos locais trabalhados para nos dar força. Cuntchuro de amendoim e outras iguarias regadas com mel. Pouco depois é tempo de sair na canoa para pescar mas também para visitar outras ilhas, igualmente ricas em vegetação e espécies animais, de onde saliento os hipopótamos. O mar é fértil em marisco e peixes variados que nos abrem o apetite. Regressamos, para nos recolhermos um pouco até ao almoço. À tarde há tempo para exercitar a mente numa esteira, para ajudar a plantar e fazer caminhadas antes de novo treino. Novo mergulho e massagens para relaxar. Depois de jantarmos ostras, acabadas de apanhar, somos encaminhados pelo meio da floresta e recebidos pela tribo para a cerimónia de aceitação, onde a natureza e o homem se fundem por entre rituais que ficam para sempre na nossa memória. A luz das tochas e da fogueira, os vultos e as danças, levam-nos para lá do imaginável.
É tempo de ir dormir, já com o pensamento bem longe do sítio de onde partimos. O efeito pretendido é instantâneo e desliga-nos dos nossos problemas e do nosso trabalho mas traz-nos à memória o privilégio do momento e o que temos de bom à nossa espera, no caminho de uma reconstrução pessoal. Trabalhado o corpo, a mente e a parte espiritual, rodeados por mar e por espaços simples que não nos desfocam do objetivo. Aqui passamos a dar valor à água potável e aprendemos a viver em sintonia com os animais sem necessidade de os eliminar. Uma semana ou quinze dias e saímos daqui como novos. Não é tempo de ficar para sempre mas de voltarmos ao nosso espaço de uma outra forma. África ensina-nos a dar valor a esse regresso. É um sonho que se vive dando-nos a oportunidade de regressar à realidade mais inteiros. Mulheres e homens. Valorizando mais a vida e o que temos.