Livrarias transformadas em "armazéns" de expedição de encomendas 'on-line'
As livrarias tornaram-se uma espécie de armazéns de expedição, entregam encomendas ao domicílio ou no meio da rua, angariam clientes pela Internet e fazem ações de protesto, tudo para sobreviverem à lei “absurda” que as proíbe de abrir portas.
Esta realidade é mais sentida em meios pequenos, onde há apenas uma livraria, ou pouco mais, e o contacto do livreiro com o cliente tem raízes e um conhecimento aprofundado dos seus perfis e gostos, que orienta a escolha de livros, o aconselhamento e as conversas de circunstância dentro da loja.
Tudo isso acabou, com a impossibilidade de as livrarias que vendem unicamente livros abrirem ao público, ao contrário de outras lojas que estão abertas por venderem bens considerados de primeira necessidade e que, por força de um decreto presidencial, confirmado pelo Governo, passaram a poder vender também os livros.
Para os vários livreiros contactados esta semana pela Lusa, este decreto é “absurdo” e “incompreensível” e tem motivado algumas ações de protesto simbólicas, como é o caso da livraria Leituria, que afixou na montra um cartaz, em que se lê “Encerrado por decreto presidencial e do Governo”, e publicou na página de Facebook uma foto de uma fileira de enchidos pendurados, com a legenda: “Os Orwell, os Tolstoi e os Saramagos, não podemos mostrar-lhos. Mas não se vai arrepender de pôr a mão nestas morcelas!”.
Para Vítor Rodrigues, fundador da Leituria, em Lisboa, esta “situação kafkiana” e “ridícula” traduz a “capacidade de pressão das grandes cadeias, a que o Presidente da República foi sensível”, que veio provocar uma quebra nas vendas das livrarias independentes, fruto de as pessoas não as poderem frequentar.
Sem querer avançar números, Vítor Rodrigues garante que está a vender bastante menos, sendo que o caso da sua livraria nem é dos mais gritantes, já que há muito que trabalha com vendas ‘online’ e comercializa livros usados, pois cedo percebeu que se se mantivesse apenas com o negócio de livros novos ficaria “em maus lençóis”, pela incapacidade de concorrer com as grandes redes livreiras.
Bruno Silva, da Distopia, loja de venda de livros, música e papelaria, localizada também em Lisboa, não hesita em avançar que as suas quebras são da ordem dos 79%, mesmo com o ‘site’ a funcionar, que é o que o tem “mantido com alguma receita”, mas “muito abaixo do ano passado”.
“Janeiro e fevereiro é sempre a pior altura do ano, com a loja fechada ainda é pior”, diz o dono da livraria, confessando que só lhe restou mergulhar mais fundo nas vendas e divulgação ‘online’, através do ‘site’ e das redes sociais.
Se antes da pandemia as vendas ‘online’ eram residuais e serviam sobretudo para vender discos e livros de editoras independentes, que não escoam nas grandes superfícies, desde abril do ano passado “teve um crescimento muito grande”, que representou um quarto do total de vendas.
Apesar de vender artigos de papelaria, a Distopia tem de estar fechada porque o seu Código de Atividade Económica (CAE) é de livraria, explicou Bruno Silva.
Situação um pouco diferente é a da livraria A das Artes, em Sines, que nunca fechou portas, precisamente porque o seu CAE principal é de papelaria.
“Antes da pandemia já vendia jornais e revistas, por isso mantenho a porta aberta, mas não o negócio: a faturação desde o inicio do mês ainda não chegou aos 500 euros”, conta Joaquim Gonçalves, explicando que “a abertura de portas não trouxe grande diferença, porque não há pessoas na rua”.
Em Sines, como noutras localidades, as pessoas andam menos na rua, e antes do decreto que lhe permitiu voltar a vender livros, os clientes que frequentavam habitualmente aquele espaço, naturalmente deixaram de aparecer.
“A abertura de portas não trouxe grande diferença, porque não há pessoas na rua. As que passam, passam de carro. Isso interessa às grandes livrarias ou às livrarias das grandes cidades, em que as pessoas saem mais, e numa ida ao supermercado passam por uma livraria”, afirmou.
Essa é também uma das razões por que não aderiu a formas de protesto simbólicas adotadas noutras cidades: “não ponho nada [na montra] porque não passa ninguém na rua. Podia fazer qualquer coisa, tirar um fotografia e pôr nas redes sociais, mas acho que não é por aí, a grande luta que temos de ter é outra, o problema é mais fundo”.
Na opinião de Joaquim Gonçalves, esta situação veio “trazer à tona o grande problema que tem de se resolver, a criação de uma lei do livro que determine que não há descontos durante 18 meses, igual em todo o lado, e não há descontos ao Estado, não faz sentido”, considerou.
Como a A das Artes não tem ‘site’, o livreiro tem de vender pelas redes sociais, “à custa de muito sangue, suor e lágrimas”, o que o obriga a ficar, por vezes madrugada adentro, no Facebook a falar com as pessoas sobre os livros, sobre novidades, tentando vender, a fazer o trabalho de proximidade e de aconselhamento que fazia na livraria, agora através de uma página da Internet.
Joaquim Gonçalves admite que deve sobretudo a duas coisas manter o negócio vivo: ter conseguido comprar há uns anos o espaço da livraria, que o liberta do encargo de uma renda, e os clientes fiéis que tem – muitos de Lisboa e alguns da Europa, que o conheceram quando venceu pela primeira vez o prémio de livraria preferida dos portugueses, em 2015.
Além das encomendas que lhe fazem, alguns destes clientes, para o ajudar a fazer face aos constrangimentos impostos pela pandemia, começaram a oferecer-lhe livros usados e em bom estado, para vender na loja em segunda mão: foi o caso de “uma primeira edição da Agustina”, que vendeu por 50 euros.
O relato de Helena Girão Santos, proprietária da Fonte de Letras, em Évora, é semelhante, no sentido em que conta com os clientes de longa data, que fazem encomendas e, neste período difícil, têm intensificado os pedidos para ajudar a livraria.
A Fonte de Letras também não tem ‘site’ de vendas – está agora a criar um –, por isso recebe encomendas por telefone, ‘email’ ou página de Facebook e vende por correio e ao domicílio.
Isto implica uma grande trabalho de divulgação nas redes sociais e numa ‘newsletter’ de caráter semanal que começou a fazer.
“Às vezes é preciso aconselhar, enviar fotografias dos livros, fazer o papel que sempre foi o das livrarias e que agora é ainda mais evidente: o trabalho de aconselhamento aos clientes, porque não vêm ver os escaparates”, conta Helena Girão Santos.
A livreira diz que o trabalho aumentou muito e que passa a manhã a fazer o apanhado das encomendas que lhe chegam pelas várias vias e as tardes são passadas a fazer embrulhos para expedir.
“Não é o trabalho, como livreira, que gosto de fazer. Isto é um trabalho de armazém. Gosto da conversa com os clientes, de porta aberta”, afirma, e embora admitindo que as vendas por encomenda “aumentaram muito” – antes da pandemia eram residuais -, garante que não vende o mesmo que vendia com as portas abertas.
Este impedimento tem criado situações caricatas como combinar com os clientes encontros na rua, para lhes entregar os livros, porque não o pode fazer à porta da loja.
“Por vezes vou ao campo, de noite, a sítios que não conheço, para fazer entregas. Descubro zonas novas que não conhecia, vejo clientes de pantufas, à porta das suas casas. Conhecia os seus gostos literários, agora conheço um pouco mais”, conta.
Quem também se tem visto a braços com encomendas é a livraria Snob, em Lisboa, que reforçou as vendas ‘online’ e de proximidade, que estão a ser “muito intensas, mas não são suficientes”, diz Rosa Azevedo, acrescentando que “dá para pagar as contas e ter a cabeça fora de água”.
“Continuamos a receber muitas novidades, porque os editores independentes continuam a trabalhar. Fazemos contactos com os clientes e divulgação através das redes sociais. A venda ‘online’ é um trabalho invisível muito grande e muito complicado de gerir”, afirma, sublinhando que a simples venda ao postigo já iria facilitar muito o negócio.
Ainda que haja poucas pessoas a circular na rua, “permitiria que passassem pela livraria numa ida ao supermercado ou num passeio higiénico”.
Além disso, “a venda ao postigo potencia vendas ‘online’”, porque permite, pelo menos, ter uma mesa com alguns destaques, o que é um “atrativo”.
“De repente, temos uma situação em que só as livrarias é que não podem vender. O fosso de injustiça é imenso e não encontramos justificação para isto. Houve zero esclarecimento do Presidente da República e do Governo. Quando se faz um decreto que não é claro, acho que se deve um esclarecimento”, lamentou.
“A Letra Livre, como todas as livrarias independentes, está indignada com toda esta trapalhada jurídico-política de reabertura dos estabelecimentos comerciais que vendem livros exceto as livrarias”, considera Eduardo de Sousa, fundador desta livraria de usados, em Lisboa.
Desde a sua abertura que a Letra Livre tem um ‘site’ e vende através da Internet, no entanto este segmento de vendas não é ainda suficiente para a sua sustentabilidade, garante, afirmando que este “encerramento forçado resultará em perdas maiores do que no confinamento passado”.
“Além disso gostamos de ser livreiros de rua, uma confraria com história, mantendo uma relação próxima com os nossos clientes”, acrescenta o livreiro.
No entanto, Eduardo de Sousa vai ainda mais longe e considera insuficiente a medida de permitir a venda ao postigo.
“Somos da opinião que as livrarias devem abrir as suas portas e não imaginamos que se possa prolongar esta ofensiva contra os livreiros independentes. Se os supermercados, papelarias, CTT, e todos os outros, não têm postigo, por que razão deveriam empurrar as livrarias para essa situação ridícula de atender à porta?”.
Em jeito de protesto, a Letra Livre publicou na página de Facebook uma fotografia de uma livraria com clientes, entre escombros, acompanhada da legenda “As livrarias não devem fechar nem em tempo de guerra!”.
“Na verdade as livrarias, como nós dizemos, não deveriam ser fechadas nem em tempo de guerra, pois o livro é um bem essencial para a cultura, informação e educação de um povo”, sustenta o livreiro.
José Pinho, da Ler Devagar, tem a mesma opinião e questiona se o livro foi alvo de uma “despromoção” no espaço de menos de um ano, já que em 2020 foi considerado bem essencial e as livrarias foram autorizadas a vender ao postigo.
A Ler Devagar, localizada em Lisboa, está também a viver das encomendas ‘online’ e não tem para já ideia das quebras que virá a ter.
“Encomendámos muitos livros em dezembro. As faturas foram emitidas. Entretanto, os livros foram confinados e nós não conseguimos vender nem devolver”, afirma José Pinho, criticando um decreto que estipula que “quem só pode vender livros é que não pode vender livros”.