Morrer em 2021
Vou desertar Senhor Presidente, porque não quero infectar, vou desertar porque não quero ser cúmplice da ignorância
Ou em 20/21, ou em 2020 e em 2021, ou em qualquer outro ano com que ainda nos possamos deparar
(há quem já não o possa fazer pela simples razão de que já finou entretanto).
E, sem destinatário presidencial específico:
Excelentíssimo Senhor Presidente
(ou Primeiro-Ministro ou whatever, como se diz em inglês, com tradução difícil para a nossa lusa língua),
deixo-vos esta carta, que lerá, talvez, se tiver algum tempo.
Acabo de receber os papéis a convocar-me para partir. Partir para a guerra, antes de quarta à noite.
Papéis que dizem estar positivo, Senhor Presidente.
Não o quero fazer Senhor Presidente, não quero partir.
Não quero enfrentar as pobres gentes que fazem o podem, com o que podem, sei-o bem, Senhor Presidente.
Não quero fazê-lo zangar-se, mas tenho de vos dizer:
a minha decisão está tomada:
vou desertar, Senhor Presidente.
Já vi morrer o meu Pai, já vi morrer minha Mãe e não quero, Senhor Presidente, ver morrer a minha Mulher, os meus Filhos, os meus Irmãos.
Vou desertar Senhor Presidente, porque não quero infectar,
vou desertar porque não quero ser cúmplice da ignorância,
vou desertar porque não quero ser um fardo, vítima de falsas promessas,
vou desertar para não ver morrer quem não tem como viver.
Vou desertar, Senhor Presidente,
ciente de que desertar para a morte não trará vida a quem já só a morte espera.
E espero, Senhor Presidente, que o meu desertar possa aliviar as pobres gentes
e carregar um peso de culpa na sua consciência, Senhor Presidente.
Porque morrer é chato, Senhor Presidente.
Não faz parte dos planos diários de um comum mortal, por paradoxal que possa parecer. Fomos feitos para nascer, viver e morrer e este final não é desejado por ninguém
(não entro aqui na discussão da possibilidade da morte assistida, por não ser esse o tema de hoje).
O acto de morrer pode ter muitas visões, umas mais prosaicas que outras, consoante a forma como é encarado, as motivações com que é encarado:
morre-se por amor
(por aquele amor que não é correspondido, por aquele amor que é reprimido, por amor a uma ideia ou ideal, por amor a uma saudade, ou só por saudade),
morre-se por raiva,
morre-se porque se quer e, pasme-se, morre-se por doença.
Sim, por doença, aquela coisa que nos vai consumindo por dentro, pela qual somos cometidos por dores, incapacidades, falência de órgãos e sistemas, enfim, sofrimento e, finalmente, a morte.
Para que haja o menor sofrimento possível na hora chegada, a ciência médica tem evoluído imenso nas últimas décadas, dando algum conforto a quem tem de inevitavelmente encarar a sua hora final.
Ninguém a quer, ninguém a deseja, mas ela está lá, à espera do desfecho, à espera…
Sabemos que é assim a lei da vida.
Mas as leis mudam, por vontade do homem ou pelas circunstâncias a que o homem é confrontado. A circunstância epidémica actual mudou e com ela a expectativa da morte mudou.
Até agora a morte era esperada por via da doença, mesmo que súbita.
Agora, até a morte está expectante da actuação do vírus que virou a vida do avesso. Virou, obrigando a deixar para trás doenças curáveis em tempo, com o tempo a deixar de ser um ajudante passando a ser um entrave. O tempo deixou de contar, contando só, ou preferencialmente em primeiro lugar, a resposta imediata à ameaça viral. Todas as outras ameaças à nossa saúde ficam em espera até que se possa determinar se e quando podemos contar com cuidados que já foram tidos como inadiáveis até há muito pouco tempo.
Por opção política Senhor Presidente, os antes inadiáveis passaram a adiávais e por isso Senhor Presidente, como sofredor de uma doença que tendo já sido inadiável e que passou a adiável, sou forçado a desertar da vida Senhor Presidente, deixando na sua consciência a culpa da inevitabilidade de uma morte não adiável.
Espero que compreenda a minha frustração Senhor Presidente (ou Primeiro-Ministro ou whatever), porque, creia, eu aceito a sua impotência e compreendo não ser sua competência.
Nota: socorri-me de Boris Vian e do seu poema “Le Desérteur”, escrito em 1954, contra a guerra na Indochina. Agradeço a inspiração, esperando que ele aceite o ter-me socorrido da sua imaginação para compor a minha.