Crónicas

As cassetes e a felicidade

Não sei se ainda se vende ou se é uma peça de museu como as minhas cassetes, mas antes havia na Casa Catanho, no Bazar do Povo e nas drogarias de Lisboa

O sol entra sala adentro, é um intervalo neste dia de chuva, mais um sábado de recolher obrigatório e histórias sobre a pandemia. A televisão está ligada nas notícias e o assunto do momento é o mesmo há quase um ano: o vírus.

Vim à casa do Laranjal cuidar das 12 galinhas e do cão, o legado vivo do meu pai, mas sempre que aqui venho dou por mim a remexer no que sobrou do tempo em que aqui vivi. Já encontrei cartas que ficaram por enviar 25 anos, fotografias que não me lembrava de ter tirado e, claro, dei com as cassetes bem arrumadas na estante onde guardei livros, papéis e diários escritos só até meio.

E lá estava a coletânea do Jorge Palma, numa cassete onde ouvi vezes sem conta a história de Amélia, que descia do comboio em Santa Apolónia, com a cabeça virada e o caderno dos desabafos todo ensopado por causa do frasco de Bien Être mal vedado. A cantiga dizia que se dirigia para o lado errado da noite depois de um encontro com Toni. E eu achava graça por causa do caderno dos desabafos e do perfume, um clássico da minha geração.

Não sei se ainda se vende ou se é uma peça de museu como as minhas cassetes, mas antes havia na Casa Catanho, no Bazar do Povo e nas drogarias de Lisboa. Era barato, todas o usámos, algures, na adolescência, quando queríamos cheirar bem e não havia dinheiro. Lembro-me de mendigar os restos dos frascos de perfume à minha prima Ana. Ela usava Yves Saint-Laurent, um aroma pesado com que me borrifei no primeiro dia em saí à noite.

Usei perfume e batôm e pareceu-me a melhor maneira de dizer que era grande, quase uma mulher, mas isso foi antes de descobrir o Jorge Palma e de ouvir cassetes num Walkman - um Sony ou um Sanyo- nas viagens de comboio e no regresso a casa para as férias. Esse foi o tempo em que fui parte dos magotes de gente que entravam e saíam do metro, mais uma na multidão, num anonimato libertador. Também eu tinha um caderno onde tentava escrever e contar histórias, mas o melhor era correr as livrarias e acabar a tarde no cinema para debater o filme no dia seguinte, no bar da faculdade.

E a cada vez que me embrenho nos papéis velhos dou comigo 30 anos mais nova, naquela idade em que tive só futuro, dava a ideia de ter pela frente um infinito de oportunidades. Ainda não havia mágoas, nem passara ainda pela perda de mãe e pai, nem por essa travessia da doença, do cancro que me bateu à porta quando tinha 23 anos. As cassetes são desse período glorioso, sem traumas e sem dor, sem rugas, dessa coisa maravilhosa que é ser jovem.