Crónicas

Quando a história nos bate à porta

Algures, na pessoa que foi, reside a energia para se manter orgulhosa, mas resta pouco mais do que isso

Se este fosse um ano normal, estaria aqui na mesa da sala da casa do Laranjal, a escrever sobre os mascarados que desciam pelo beco, mas estamos em 2021 e, desde que me ligaram do centro de saúde, tenho apenas uma preocupação: levar a minha tia à vacina. A minha tia Conceição, outrora uma senhora muito independente, tem 88 anos e uma falta de razão que torna a vida de todos os dias uma travessia alterosa, de humores vários e memórias intermitentes.

Umas vezes sou uma desconhecida e, no minuto seguinte, chama por mim, sou a Marta, não tem dúvidas e, nisto, dá duas volta à casa e, confessa, que não me vê há meses. Algures, dentro da cabeça cada vez mais perdida, sobra ainda parte do carinho que me dedicou, tem saudades e, quando me reconhece, fica feliz, vejo no olhar, quando lhe seco o cabelo e passo creme na cara. É um instante e, por isso, não sei como será nas filas da vacina, num mundo para lá da casa, da entrada e do banco da paragem.

Esta é a vida da minha tia, os pontos que a orientam e que a fazem chegar a casa todos os dias. Não sabe que há uma pandemia, um vírus sorrateiro que infecta velhos. Ainda lhe perguntei se sabe da doença nova e quis explicar que é para usar máscara, mas dobrou muito bem dobrada e guardou dentro do bolso do casaco. E de pouco serviu o conselho, que ficasse em casa, não há quem lhe tire o prazer de se sentar ao sol no banco da paragem.

Às vezes anda um pouco e fica a olhar em frente, o caminho que vai dar à casa da minha tia Alice e tem saudades, não a vê, nem a ela, nem às outras irmãs, o pai e a mãe e os vizinhos com quem cresceu e viveu anos a fio. E é cruel dizer-lhe que estão todos mortos, não quer acreditar que é a última de uma geração e de um tempo, uma peça fora daquele vai-vem de pessoas na paragem e no café junto à fonte. Os outros vêem uma velhinha que perdeu o juízo, ela imagina-se como foi, dona de terras e parte de uma família grande e respeitada.

Algures, na pessoa que foi, reside a energia para se manter orgulhosa, mas resta pouco mais do que isso. A minha tia Conceição, aquela senhora despachada que até aos 80 anos viajava sozinha e tinha amigos no Porto, com quem passava férias e a quem telefonava todas semanas, é agora vulnerável, com poucos laços a ligar à realidade. E é esta mulher, de cabelo muito branco, que tenho de levar ao Tecnopólo, que é preciso manter numa fila e sentar por 30 minutos a ver se há efeitos secundários.

E sei que na vida já tive dramas, conflito e complicações suficientes e graves, mas o que tenho pela frente quando me levantar este domingo é tremendo: cabe-me levar a minha tia, cuja cabeça se afundou no seu mundo, ao posto de vacinação contra Covid e não sei se estarei à altura, se lhe posso garantir mais tempo a fazer o que lhe interessa mesmo, que é apanhar sol, no banco da paragem, enquanto vê chegar e partir autocarros. Parece pouco, mas é a existência daquela velhinha de 88 anos. Um dia pode ser também a minha.

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