Criaturas de fábula
António e José são vizinhos. Partilham o quinto piso do “Buganvílias da Ajuda”, um prédio na zona turística do Funchal. Aí acabam, contudo, as suas semelhanças. É que António é a favor, e José é do contra.
Como é que um sujeito se torna do contra? José não sabe. Os pais sabem? Não, não sabem. Os professores sabem? Não, não sabem. O psicólogo sabe? Não, também não sabe. Talvez o psicanalista? Dizem que psicanálise é um método terapêutico criado pelo médico austríaco Sigmund Freud, que consiste na interpretação dos conteúdos inconscientes de palavras, ações e produções imaginárias de uma pessoa, baseada nas livres associações e na transferência. Mas esses sacanas também não sabem porque é que o sujeito se torna do contra. Muito menos José.
E como é que um sujeito se torna a favor? Não só não se sabe, como não se investiga. A sociedade presume – mal – que cidadãos ordeiros, funcionais e produtivos não podem ser patológicos. Mas António, à sua maneira, é tão doente como José.
São ambos criaturas de fábula. José é o soldado que marcha ao contrário do pelotão, mas crendo que os outros praças vão ao engano. Já António era a criança que desdenhava do dilema dos amigos e do abismo. “Mãe”, respondia, “se os meus amigos se atirarem todos do penhasco, é claro que eu também vou! O que é que fazia lá em cima sozinho?”.
Sucede que José nunca foi à tropa, e os amigos de António nunca abicaram de uma levada. E assim aquelas cabeças enfermas, perigosíssimas, andam à solta e por diagnosticar. Até hoje. Morando em cotovelos opostos do mesmo andar, José e António são loucos antagónicos, siameses inversos nos hábitos, nos valores e no carácter. E nunca como no Covid foi tão evidente.
António, que é a favor, tem uma devoção catecúmena pelas regras, que revisita todas as manhãs como um muçulmano dobrado para Meca. Ele, que nunca fez exercício, começou quando o suor se tornou capital e estatuto de rede social. Corre agora 18 quilómetros todos os sábados, para aflição do seu coração destreinado. O dia começa cedinho, com um amigo, numa corrida na estrada monumental, que nunca antes dera acompanhado nem de manhã. Cada dia com um, que é para os ir vendo a todos. Ao almoço, a mesma coisa, agora com colegas e outras afinidades. A tarde, sarapintada de cafés, é encerrada no supermercado, onde se concentra de máscara na hora do lobo. Aos fins-de-semana, com as pernas a descambar, faz a rota das ponchas e dos restaurantes de campo, a pretexto do contacto com a natureza e o apoio ao negócio. No Carnaval, arranja-se uma festinha. De dia, com as crianças, que a vida não é só sofrer. Esta existência solar, sociável, emancipada de qualquer pensamento independente interrompe-se dramaticamente com o pôr-do-sol, hora a que António recolhe como um mártir de candonga e maldição. À noite, na varanda, fuma, telefona, espreita os transeuntes, e estuda de soslaio o bairro social enquanto faz tempo para passear a cadela da namorada.
Já José, que é do contra, tem uma devoção catecúmena pelas regras, que revisita todas as manhãs como um muçulmano dobrado para Meca. Ele, que sempre se exercitou de madrugada, andrajosamente e de sapatilhas podres, reviu o horário assim que as manhãs se apinharam de neófitos do confinamento, adornados de laranjas, rosas e cianos berrantes, que na sua previsibilidade o melindram. José trabalha em casa, com horários regulares e disciplina espartana. O almoço é frugal e solitário, a toque do genérico das notícias, a que assiste na esperança de reforçar a sua invencível indignação. Tem os números contados e seriados, a lápis, com datas e paradigmas. Aí, em folhas que o seu pai teria usado para o jogo do bicho, destaca as incongruências, enganos e decepções dos homens e das leis. As frustrações do dia e do trabalho, fatalmente imputadas a agentes externos, são lenha para uma fornalha que não para de alimentar. José, sendo do contra, vive para quebrar as regras. Mas só inofensivamente. Exercita-se no escuro, sozinho, desbragado, pendurando-se em balcões, pulando escadas e corrimões, como um anti-herói soturno ou um conde transilvano. Janta com a mãe velhota numa mesa comprida, de janela aberta, depois de longuíssimos passeios ao seu encontro. Encomenda, sozinho, comida em restaurantes clandestinos, que distribui por amigos doentes e depauperados, sempre os mesmos dois ou três. Mas não finta, não se desvia, nem se esconde. Pelo contrário. Procura a Polícia, ser parado por ela, interpelado por ela, julgado por ela. Como quem procura sempre encontra, José encontra-os frequentemente.
“O que faz aqui? Não sabe que é proibido?”
“Sei sim. Só cá estou porque não está cá mais ninguém.”
“Já viu se toda a gente fizesse o mesmo?”
“Se toda a gente fizesse o mesmo, senhor agente, eu faria outra coisa.”
E José é multado, é sempre multado. Não pelo desacato, mas pela impenetrável solidez desta lógica subversiva. E alegra-o o absurdo dessa multa e do seu pagamento. É esse o louro da sua vida de contrário: o triunfo da sua ética individual sobre o paradoxo da ordem colectiva. Guarda as facturas em casa, afixadas como troféus.
António, que é a favor, admira um pouco José, embora nunca o admita. José, que é do contra, despreza integralmente António, mas admite que seja só para contrariar.
De vez em quando, António e José encontram-se no átrio do “Buganvílias”, onde se cumprimentam educadamente. E é nesses segundos de abismo e contraste que José, o reincidente, mais se arrisca a apanhar Covid-19 de António, que ainda não quebrou regra alguma.
Só por isso, José aproxima-se.