Crónicas

O bom, o mau e a procissão

A vacinação ainda vai no adro, mas não lhe faltam peregrinos. Como em qualquer procissão, uns mais crentes que outros.

Enquanto o milagre português se parece, cada vez mais, com uma longínqua miragem, também os livros já não são o que eram. Essenciais. Agora traficam-se ao postigo, passam-se por debaixo da mesa e exibem-se, plastificados e interditos, nas prateleiras do supermercado. Pelo menos até segunda-feira. A bizarria é, como tudo, anti-pandémica. É essencial impedir o ajuntamento de milhares de portugueses, precipitados sobre pequenas livrarias indefesas, para açambarcar livros. Não menos importante é a concorrência. Nos supermercados, os livros foram substituídos por papel higiénico para não prejudicar as livrarias que se encerraram. Pode comprar carne e peixe em segurança, mas não se atreva a comprar um conto para crianças. Tudo isto dava um livro. Se, ao menos, houvesse onde comprá-los.

O bom: João Pedro Caupers

Quem faz a sua vida na Justiça, cedo se apercebe que nem todos os tribunais são iguais. Não pela velocidade ou justeza do funcionamento, que também os distingue, mas pela vontade que têm em decidir. À medida que subimos na hierarquia judicial, reduz-se a probabilidade de uma verdadeira decisão. O Tribunal Constitucional tornou-se, por isso, especialista na arte de não decidir. Em 2018, dos 1579 recursos relativos a inconstitucionalidades, o Tribunal proferiu 929 decisões de inadmissibilidade. Ou seja, na maioria das vezes, decidiu que não podia decidir. Seria ingénuo achar que o novo Presidente do Tribunal, João Pedro Caupers, alteraria a instalada passividade decisória. Mas numa semana em que se festejou a condenação da Região a devolver impostos aos municípios, também se esqueceu que o preço dessa vitória é o fim da autonomia financeira das regiões autónomas. Por isso, a eleição de Caupers é uma luz ao fundo de um túnel de decisões constitucionais que atropelam as autonomias a gosto do Estado. Vale a pena ler a sua indignação perante o confisco pelo Estado da sobretaxa de IRS cobrada na Madeira ou a crítica mordaz à recusa do Estado em reconhecer aos Açores poderes sobre o seu domínio público marítimo. É certo que uma andorinha não faz a primavera, mas pode anunciá-la.

O mau: Eutanásia

É difícil opinar sobre o fim da vida dos outros. Essa dificuldade aconselha-nos a ter mais dúvidas do que certezas sobre a eutanásia. Será a morte assunto de uma pessoa só? Quem pede para morrer, fá-lo livre do jugo da doença e do sofrimento? Não estará o seu livre arbítrio, naquele momento, irremediavelmente comprometido? Será este o primeiro passo para, como noutros países, alargarmos a eutanásia a quem ainda não está em sofrimento? Esta crónica não oferece essas respostas. É, apenas, uma reflexão sobre como cá chegámos. Chumbada em 2018, ausente da campanha eleitoral em 2019, a eutanásia teria uma primeira votação positiva em 2020 e seria aprovada em 2021. A coincidência temporal da aprovação com o pico da pandemia, mais do que simbólica, é reveladora da leviandade do processo. Votou-se a eutanásia no mês em que mais pessoas morreram em Portugal, desde que esse registo existe. Os números chocam e, por isso, inquieta a facilidade com que se lamenta a morte para, passo seguinte, se decidir pela sua legalidade. Especialmente por a lei aprovada garantir, e bem, acesso aos cuidados paliativos como alternativa. Com os hospitais sobrelotados e a exportar doentes, todos sabemos que essa garantia está inegavelmente colocada em causa. Se isso não bastasse, a lei foi aprovada, ignorando pareceres negativos do Conselho Nacional de Ética, da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Enfermeiros. Não está em causa a bondade de quem viu solução na eutanásia, apenas a urgência com que se quis despachar o assunto. Repugna a legalização da morte nos dias indizíveis em que vivemos. Afinal, qual era a pressa?

A procissão: Plano de vacinação

A vacinação ainda vai no adro, mas não lhe faltam peregrinos. Como em qualquer procissão, uns mais crentes que outros. A começar pelo primeiro líder do cortejo. Dividido entre a coordenação do plano de vacinação e a gestão de um hospital, Francisco Ramos falharia nos dois. Na verdade, a maior falha foi a de quem o escolheu para liderar a operação logística mais importante dos próximos anos em Portugal. E enquanto a lenta marcha de inoculação descia a avenida dos telejornais, sempre acompanhada por ministros e secretários de estado sorridentes, chegava a hora dos políticos serem vacinados. Por cá, a procissão parou e o andor por pouco não caiu. Sem um critério claro de prioridade, para além do pouco científico protocolo de Estado, o espírito de súbita e desinteressada abnegação invadiu vários peregrinos. Ofereceram-se vacinas, cederam-se lugares, até se invocou a condição, porventura redescoberta, de cidadão comum. Um admirável mundo novo de sacrifício pelo próximo. Não lhes critico a opção, mas suspeito do seu taticismo. Por isso, merece destaque quem prescindiu de alinhar na confortável renúncia à vacina sabendo, de antemão, que isso lhe custaria indignação passageira, mas que garantiria capacidade para exercer as funções para as quais foram eleitos. Uma palavra de apreço ao Pedro Coelho, Ricardo Nascimento e Emanuel Câmara. Toda esta lamentável procissão poderia ter sido evitada, se se tivesse definido um plano para que apenas os cargos executivos, cujas funções são exercidas em proximidade, logo mais expostos, fossem vacinados. Assim, não haveria a tentação de escolher entre a vacina e as próximas eleições.

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