Um perigoso “apartheid”
Pouca gente terá ligado ao apelo consternado do diretor-geral da OMS, quando a 18 de janeiro denunciava o que se passa com a vacinação contra o coronavírus: “Mais de 39 milhões de doses foram inoculadas em 49 países de alto rendimento. Apenas 25 doses foram administradas num só país de baixo rendimento. Não 25 milhões, não 25 mil, mas apenas 25”.
No início de fevereiro, a vacinação no mundo alcançava o pico de 101 milhões de doses administradas em apenas 64 países: o mundo dos chamados “países ricos” atingia a taxa de 4,25 milhões de doses inoculadas por dia, enquanto o restante mundo dos “países pobres” ficava a assistir. Os últimos dados da Bloomberg mostram que os países de maior rendimento per capita integram apenas 16 por cento da população mundial, mas já administraram 65 por cento do total das doses de vacina. Todavia, nenhum dos inúmeros países de baixo rendimento, que abrigam 35 por cento dos seres humanos, conseguiu lançar qualquer campanha de vacinação em massa. Uma coisa é certa: a vacinação em curso veio expor ainda mais a desigualdade gritante que reina no mundo; se o atual rumo não for corrigido, esta pandemia ficará assinalada não apenas pelo afundamento trágico da economia global, com seus efeitos devastadores sobretudo entre os países e sociedades mais pobres, mas por uma enorme “catástrofe moral”: o resultado da guerra pela reserva de doses fez surgir o novo “apartheid das vacinas”, conforme um alerta deixado por cientistas e ativistas de todo o mundo. Insista-se na escandalosa expressividade dos números. Mais de metade dos cerca de 13 biliões de doses de vacinas compradas destinam-se aos países mais ricos, que têm uma população de apenas 1,2 biliões de cidadãos: o Canadá, por exemplo, comprou doses para vacinar cada canadiano 5 vezes, enquanto a Austrália ou o Reino Unido (entre outros quatro países) têm doses para vacinar os seus cidadãos pelo menos duas vezes (incluindo as vacinas ainda não aprovadas).
Mas é nos países ricos que começam a ouvir-se proclamações contra esta pandemia da desigualdade: ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo! As enormes falhas na cobertura mundial da vacinação podem ocasionar a perda de mais de 100 biliões de dólares por ano em países ricos que têm acordos globais: a desaceleração económica dos países mais pobres, originada pela pandemia, terá um efeito cascata em todo o mundo, que vai reverter no afundamento global causado pela lógica pandémica. O vírus não tem fronteiras e se não for combatido globalmente, continuará a circular desenvolvendo novas variantes (mais letais e resistentes às vacinas) que retornarão aos países ricos: um efeito boomerang que nenhuma carteira recheada conseguirá evitar. Como alertaram especialistas em sessão recente da OCDE, o acesso equitativo a vacinas é fundamental para uma recuperação global — tanto da crise sanitária como da economia. O FMI estima que, até 2025, a economia mundial possa perder 9,2 biliões de dólares se os países pobres não tiverem mais vacinação; e metade dessa quantia será perdida pelas economias desenvolvidas. Então, o problema maior é que o risco não só permanece como se multiplica: ao adiar a vacinação dos mais pobres, é a duração da pandemia que aumenta, dando espaço ao vírus para se espalhar e sofrer mutações. O nacionalismo das vacinas só ajuda o vírus. Isto anda tudo ligado. No mundo da realpolitik, o nacional é global: o debate não é sobre altruísmo, mas acerca da sobrevivência.