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Antes do tempo

O principal é nunca deixar de pensar, seja de noite ou de dia”, diz o meu tio-avô do alto dos seus lúcidos cem anos

Procuramos ser sensatos, educados e prudentes. Somos empenhados, ponderados e obedientes. Discretos, fortes e seguros. Contidos. Desejamos tudo e não queremos perder nada. Pensamos, agimos e conquistamos. Somos organizados, bem-comportados e arrumados. Fazemos planos e acreditamos. Assumimos o risco, mas não arriscamos. Temos medo. Aceitamos. Procuramos sinais e olhamos o céu. Temos saudade. Damos beijos e abraços. Guardamos garrafas para ocasiões especiais que, entretanto, passam sem as abrirmos. Adormecemos e acordamos. Renascemos. Esperamos. Somos tudo e corremos para nada. Percorremos o tempo, mas somos momento. Paramos e recuamos. Recusamos e brigamos. Somos encontros do tempo desencontrado. Fora de tempo, antes do tempo ou depois do tempo. Cedo ou tarde demais. Sofremos. Questionamos. Guardamos. Cuidamos e amamos. Não nos libertamos e fugimos. Queremos e não podemos. Tememos. Desesperamos e cedemos. Brincamos com o fogo e queimamo-nos. Saramos feridas e abrimos outras. Não aprendemos. Caímos. Levantamo-nos. Construímos e destruímos. Perdemos e ganhamos. Somos controlo e descontrolo. Justos e injustos. Donos de nada e reféns de tudo. Somos conforto e desconforto. Inquietos, críticos e inteligentes. Inconformados, seguimos em frente. Corremos e não pensamos. Deixamos passar. Corremos muito. Receamos. Lembramos. Recebemos, damos e deixamos. Afastamo-nos e reaproximamo-nos. Estamos longe e estamos perto. Estamos aqui. Somos a rua onde crescemos e as pessoas com quem nos cruzamos. Somos os cheiros que nos marcam e alimentam a alma. A recordação e a memória. Somos instinto e pensamento: “É preciso pensar muito e em muitas coisas. O principal é nunca deixar de pensar, seja de noite ou de dia”, diz o meu tio-avô do alto dos seus lúcidos cem anos.

E os anos passam. É assim o tempo que passa. Somos vida e somos tempo. Somos muito e somos pouco. Somos nada. E tarde ou cedo acaba. Morremos. Sim, morremos. A morte: a única coisa que sempre me assustou e que tive de respeitar para além de toda a minha rebeldia. Tive mesmo. Chorei e tive medo. Ainda tenho. Rezei. Lutei. Procurei fugir da morte nas palavras e nos pensamentos, mas cruzei-me com ela, chocámos de frente. Perdi, assumo que perdi. Questionei. Tive de aceitar, mas não me rendi e vivo para além dela. Recuso firme e convictamente o luto, mas assumo friamente a luz que se apaga, como aceito o tempo que passa. Tenho de aceitar o fim daquela rua onde cresci, agora sem aquelas pessoas que passavam, que subiam e desciam, numa intensidade carregada de vida verdadeira. Vão partindo e a rua, triste, chora agora as ausências. Procuro guardar o que recebi para o meu sempre que é tão pouco e que acaba, porque também sou tempo e não sou nada.

Ao meu querido amigo Abel, aquele abraço sentido de sempre, para além do tempo - o abraço da nossa vida e das nossas raízes naquela rua intensa onde me senti sempre mais perto de mim.

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