Ficha de Emigrante – o início do fim
FOTOGRAMAS
A semana passada, referia que pouco tempo após a chegada a Niterói de Eugénia, seu filho e familiares, entre os quais a sua mãe, esta última vem a falecer num trágico atropelamento de elétrico. Este episódio dará uma impressão aos familiares na Madeira, àqueles cujas imagens mostrámos aqui mais do que numa ocasião, que o Brasil era uma terra incivil, perigosa e trágica.
Em 1960, Eugénia, senhora que em 2015 me dava a provar na sua casa em Niterói um delicioso bolo Madeira enquanto fazia o relato do seu percurso migratório, juntava-se então ao marido Marcelo. Relembro que Marcelo tinha montado aí uma venda/bar, parecendo enquadrar-se exatamente no perfil que a historiadora Andrea Corte refere em “A territorialidade portuguesa em Niterói – 1900 – 1990”, a propósito da comunidade madeirense em Niterói. “Em Niterói, expostos à pressão de um mercado de trabalho pouco desenvolvido e bastante disputado, tanto por continentais como outros grupos de imigrantes, os ilhéus da Ribeira Brava constituíram verdadeiros monopólios madeirenses na cidade, como as atividades de leiteiros e carroceiros, nas décadas de 1930 e 1940, e, a partir dos anos de 1950, as quitandas. Vale dizer que a partir da década de 1950, muitos dos que desembarcaram na cidade, já haviam passado por outras experiências emigratórias. Boa parte vinha da Venezuela e de Curaçao, trazendo consigo as esposas e algum dinheiro para começar a vida como pequenos proprietários.”
Hoje encerra-se este ciclo de pequenos textos sobre a família transnacional Fernandes com uma Ficha Consular de Qualificação de, precisamente, Eugénia Fernandes. Este documento conta com uma fotografia de identificação, vulgarmente chamada fotografia de passe.
Passaportes e documentos gerais de identidade são modelos em relação a documentos de identificação como este, na medida em que definem uma matriz para a definição e enquadramento da identidade individual a partir de finais do século XIX, e então adstrita à regulação do Estado. O uso generalizado destes documentos, para os quais a fotografia foi um importante suporte, viabiliza o exercício (e implementa, portanto, a restrição) da cidadania. Permite um controlo minucioso da circulação e permanência num determinado território de indivíduos previamente definidos como ‘estrangeiros’ e, logo, cujo acesso aos territórios passa a estar condicionado, vedado, à partida. Esse princípio de controlo restritivo assenta na correlação entre local de nascimento e na noção de legitimidade de pertença a um dado território.
A par destas fichas foram previamente produzidas, aquando do processo interno no país de origem, Fichas de Emigrantes. Aparentemente necessárias para tal fim, integram, quase sempre, retratos fotográficos de todos aqueles que se propõem emigrar, inclusivamente, de crianças pequenas. Não sendo documentos oficiais mas sim documentos auxiliares à produção daqueles, ficheiros de um processo onde se reunia a informação julgada necessária à emissão legal desses outros (passaportes), por essa mesma razão, as fotografias não parecem aí cumprir a função de identificação dos indivíduos, (ao invés das que constam nos passaportes). Parecem sim sobretudo funcionar como opacas provas da omnipresença de um controlo, como encarnação da própria “verdade” fotográfica. Ou seja, se no documento de identificação a fotografia simultaneamente sustenta e é sustentada por descrições antropométricas que ora a confirmam, ora a elucidam, transcendendo-a, nos registos que serviriam a produção desses documentos esta apenas parece reforçar a construção de um estatuto de verdade. Além de recordações familiares e mementos elas são portanto símbolos e carimbos de uma identidade atestada.
Terminamos hoje e assim esta série de crónicas por onde poderíamos ter “começado”, pela reprodução desta ficha de Eugénia Fernandes. A toda a família na Madeira, em Boston e em Niterói e, em particular, à Dona Eugénia e sua filha Márcia, o meu profundo agradecimento pela amizade e partilha das suas histórias e imagens, e pela cuidada pesquisa dos próprios baús (e tabus) familiares.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.