Crónicas

A televisão a cores no ano da morte de Sá Carneiro

Já se via a telenovela a cores e a minha mãe não se cansava no tanque a esfregar a roupa à mão.

O meu pai comprou a televisão a cores nesse ano. Lembro--me que veio no mesmo dia que a da minha tia Alice e uns meses depois a minha mãe decidiu mudá-la para a sala, onde havia um sofá e duas poltronas, uma mesa de vidro e um grande quadro na parede. Todas as noites, depois do jantar, ligava-se a televisão para o ver o telejornal e a telenovela e, todas as noites, o meu pai sucumbia ao sono e ressonava num canto do sofá, enquanto a minha mãe bordava e eu via pela primeira vez as cores dos vestidos das actrizes das telenovelas.

E tudo aquilo parecia um luxo asiático no Laranjal de 1980, quando alguns vizinhos ainda iam buscar água ao fontenário público e nem todos tinham televisão. Faltavam 20 anos para o ano 2000, para o futuro que nos lançaria no espaço em naves especiais – era como eu imaginava o futuro – e na minha casa tínhamos entrado nesse novo tempo com uma televisão a cores. Nunca me sentira tão orgulhosa, até me gabei na escola. Ninguém acreditou. Podia lá ser o mestre Gabriel, pedreiro de profissão, que soletrava as notícias dos jornais e mal sabia assinar o nome, ter arranjado 36 contos para comprar a mais avançada tecnologia?

O ano foi bom, não teve semanas de férias, nem azares por causa da dor ciática e houve muitos biscates aos fins de semana. De uma vez, veio a máquina de lavar roupa, a televisão a cores, a cama de molas para o lugar do colchão de lã e até a minha mãe comprou um fato de saia e casaco e uma blusa de laço, fazia lembrar a roupa da primeira ministra inglesa. Os nossos dias corriam bem, com mais conforto, embora o país andasse como sempre, com eleições, umas a seguir às outras. Do que me lembro, daquelas conversas em casa das minhas tias nos domingos à tardinha, a família votava toda na AD.

Não acredito que tivessem lido o programa eleitoral ou que soubessem muito do pensamento da aliança, mas sei que eram pessoas normais, moderadas, que se assustavam com o discurso radical de esquerda. Sá Carneiro dava-lhes confiança, parecia sensato aos olhos daquelas mulheres e daqueles homens acima dos 40 anos que, depois dos anos da revolução, queriam apenas sossego para seguir em frente. Não tinham planos políticos, nem ambições desmedidas, planos impossíveis. Queriam trabalho, um salário e dinheiro para ter a tal vida melhor que o 25 de Abril prometera. E uma televisão a cores, uma máquina de lavar roupa e uma sala com sofás e alcatifa fazia parte dessa ideia de viver melhor.

1980 caminhava para o fim quando, numa das nossas noites a ver televisão, num dia de semana sem história além do telejornal, da campanha eleitoral e da telenovela, a emissão foi interrompida. Não se percebeu bem, mas a minha mãe foi buscar o rádio, a ver se se percebia o que se passava. Lembro-me que o meu pai desconfiou, disse um “deve haver qualquer chatice em Lisboa”. E acho que foi pela rádio que soubemos do acidente de avião. A confirmação chegou, o país perdera o primeiro ministro e os meus pais, que votaram no general Eanes para Presidente da República, ficaram perdidos, sentiram-se órfãos.

Lembro-me que, nessa noite, apareceu o meu tio Humberto e a minha tia Alice. Um primeiro ministro morto era um assunto grave, preocupante num país a seis anos da revolução e com a memória ainda fresca de um golpe de Estado. Os meus pais, os meus tios e tias já não eram novos, tinham atravessado o melhor que sabiam os anos quentes do pós-25 de Abril e olhavam o futuro com inquietação. O que é que estava para chegar? Ninguém estava em condições de perceber naquela noite de 4 de Dezembro de 1980, um ano que até nos tinha corrido bem. Já se via a telenovela a cores e a minha mãe não se cansava no tanque a esfregar a roupa à mão.