Crónicas

Falhámos. Queremos continuar a falhar?

«Quem mandou pôr Teu nome No jornal?» Maria Teresa Horta, «Mulheres de Abril»

2021 termina como 2020 terminou: com a Região enlutada por mais um caso de assassinato em contexto de violência doméstica.

Se há um ano nos interrogamos sobre como foi possível deixarmos a Teresa sozinha com o seu agressor no dia em que este foi sentenciado, em tribunal, a perder todo e qualquer poder que ainda exercia sobre ela, este ano a comoção geral vai para o assassinato de Carla, juntamente com o seu filho, Gabriel, por querer libertar-se de um homem que a torturou – e aos seus – nos últimos 20 anos. Em ambos os casos, a certeza de que, enquanto comunidade, falhámos a estas pessoas.

Romantiza-se sempre este tipo de agressões extremas e os títulos de jornais (des)ajudam – e muito. Num jornal nacional, lia-se que «homem desempregado não aguentou fim da relação». O título, quer queiramos quer não, apela a uma certa indulgência para com o ato definido como «tresloucado». Ao invés, o comportamento da vítima é escalpelizado sem a mesma benevolência ou indulgência. No dia a seguir ao assassinato, podia ler-se na imprensa regional que a «Vítima levou 20 anos para denunciar marido agressor». Portanto, os holofotes deslocam-se da questão de haver alguém que agrediu consistentemente outrem ao longo de 20 anos, para o facto de não haver denúncias formais anteriores a dezembro.

Sabemos bem que estes processos são extremamente difíceis. Na grande maioria dos casos, as agressões físicas surgem depois de consolidadas as agressões mais subliminares, as que minam a autoconfiança das vítimas através de diferentes mecanismos como a violência psicológica, o isolamento relacional, a intimidação reiterada com ameaças à vítima e às relações mais próximas, entre outros. A fragilidade emocional é transversal a quase todos os casos e por isso o processo de quebra de laços com o agressor e de ganho de confiança para tentar procurar ajuda é muito moroso e complexo. Fingir que é simples e que depende única e exclusivamente da vontade das vítimas é uma postura, para não dizer pior, preguiçosa.

Mas o desrespeito pelas vítimas não ficou apenas pela forma como se «deu» a notícia. As declarações da magistrada do Ministério Público deixam a nu como, neste caso, tudo falhou.

Desde logo, a falta de sinalização da denúncia feita pela vítima, no início de dezembro, como sendo grave. Uma queixa que relata agressões que aconteceram ao longo de duas décadas não pode ser tratada como singular, são múltiplas queixas concentradas num momento. Acresce o facto de que as equipas que lidam com estes casos sabem que as ruturas e as separações tendem a fazer escalar o risco e aumentam a perigosidade. Não é compreensível que se afirme que nada fazia prever este desfecho quando alguém apresenta uma queixa com um quadro de 20 anos de injúrias e agressões, quando, nos dias imediatos, a vítima reiteradamente expressa que teme pela sua vida. Como agravante, temos que as agressões físicas se estendiam ao filho, menor.

O «Manual Pluridisciplinar sobre Violência Doméstica – Implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno» (uma parceria entre o Centro de Estudos Judiciários e Comissão Para a Cidadania e a Igualdade de Género) deixa bem claro que, na avaliação do risco deve ser tido em conta que, nos casos de violência doméstica, «(…) a probabilidade de repetição e de aumento da escalada da violência é significativa. Por esse motivo, impõe-se, como essencial, a utilização de meios que permitam a correta avaliação do risco, por forma a permitir a atuação para impedir a continuação da atividade criminosa, proteger a vítima em várias dimensões e ressocializar os agressores.»

Outra falha grave no processo de sinalização: como é possível que a agressão a uma criança não tenha sido encaminhada para as entidades competentes? Os pareceres das ordens profissionais (quer dos médicos quer dos enfermeiros) não deixam margem para dúvidas a este respeito; a denúncia ao Ministério Público é obrigatória para as entidades policiais. Como é possível que se tenham passado duas semanas entre a agressão que mereceu tratamento hospitalar e o desfecho trágico sem que aparentemente nada tenha sido feito em relação a esta criança?

A carta aberta publicada pela família das vítimas deixa bem claro que tudo isto faltou, apesar dos apelos reiterados da vítima para que fossem tomadas medidas de proteção.

De tudo isto, importa que tenhamos a capacidade de perceber onde estão as falhas a fim de as corrigir. Dos casos de sucesso não reza a história, mas os casos de insucesso são demasiado pesados para que se encolha os ombros. É necessário procurar e perceber o que precisa ser alterado nos procedimentos para que não tenhamos outras vítimas a sucumbirem a uma situação-limite que não foi evitada pelas várias entidades a quem compete agir.

Mas precisamos ir mais longe e refletir também sobre como continuamos a penalizar as vítimas a fim de garantir os direitos de quem agride; não é admissível que em situação de violência doméstica as vítimas continuem a ter de abandonar as suas residências e as suas vidas. Não se compreende que tenham de recorrer a casas-abrigo que, muitas vezes, funcionam de forma absolutamente desrespeitosa relativamente ao direitos e garantias das vítimas que a elas têm de recorrer. Como se compreende que sejam as vítimas a ter hora de recolher obrigatório? Ou a ter de se submeter a uma reorientação de vida que se resume a aprender (?!) tarefas domésticas e infantiliza mulheres adultas? Por que razão se garante o direito a quem agride a ficar no seu espaço em detrimento do direito das vítimas (muitas vezes múltiplas, porque inclui filhos/as)? Porque têm de ser as vítimas a adaptar as suas vidas a espaços estranhos, com pessoas estranhas e com regras absurdas que as menorizam e ferem (ainda mais) a sua autoestima? Por que razão, em nome do direito à presunção de inocência de quem é acusado de agressão, se condenam as pessoas agredidas a prisão preventiva, de facto?

2021 termina como 2020 terminou: com a Região e o País enlutados por mais um caso de assassinato em contexto de violência doméstica. Na maioria dos casos, a certeza de que, enquanto comunidade, falhámos a estas pessoas. Queremos continuar a falhar? Como queremos terminar o ano de 2022?