O ano a chegar ao fim
O ano a chegar ao fim. Apesar de tudo convencionado, o ano a chegar ao fim mexe com o tempo dito objetivo da física e da matemática, a fazer-se de conta nos relógios, como o faz com o nosso tempo que se pressente subjetivo na ansiedade de o contar decrescente, como se a alma, talvez pensando em René Magritte, também fosse um algoritmo metafísico.
Com zero consciência de utilidade, mas evidente pulsão, confesso que escrevi sempre (e muito): diário aqui e ali das folhas A4, nota solta nas agendas, verso diluído nos moleskines. Das razões para tanto, nada tenho a declarar; ademais, o direito ao silêncio é uma garantia fundamental [contra a autoincriminação, o mundo a desmoronar, essas coisas...
Estou vacinado, já com a dose de reforço, o que não me coíbe de lavar e desinfetar as mãos, de evitar aglomerações e de fazer testes periódicos. Vulnerável à infecção e à transmissão, como toda a gente – estamos em plena pandemia, afinal -, dou graças ao SNS (Portugal) pela terceira dose, acabada de tomar. Aproveito para assinalar a irrepreensível logística montada, assim como o serviço de atendimento que se recomenda.
Penso, logo existo; escrevo, existencializo; lavro em verso, prosa ou flash, presentifico-me. Ampliar ou não ampliar, insiste alguém numa paródia à Shakespeare, referindo-se ao édito. Em assaz embalo, entre a azáfama de editar outros e dar conta de outros recados em tempo de crise e de abalo, ponho-me a pensar. Quo vadis?
O abalo, que ora monta o cavalo, ora pedala a bicicleta - aqui, dois filmes para os meus amigos, “Os cavalos também se abatem”, de Sydney Pollack, e “Ladrões de bicicletas”, de Vittorio De Sica -, abalo, dizia, de não mendigar trégua alguma (i) à sintaxe, (ii) à semântica e (iii) à metáfora, nem esperar festarola, tocatina ou estardalhaço da imprensa. Alçar, como Baudelaire, o voo mais alto é que é, mas sem as cenas com power point e coffee break. Puezia un stiku bai! Arménio Vieira - sim, Le Poète, assim o Adroaldo, como lembra o amigo Érico Veríssimo (Ramos), outrossim o E Silva, como o tratava o meu pai Filinto (também Anastácio) -, Conde de Silvenius, num dos suspirares poético-existenciais, eternizou que “O olhar de Deus contempla a minha cidade./ Porém, não há estátua que preste na minha cidade.” Para o situacionismo dos hommes d’équipage, no puro afã do “sigi sabura”, Arménio Vieira, constando aqui nos flashes como prince des nuées, é quem entre um cavalo e uma bicicleta, escolheria um caracol...
Sugeriu alguém faça eu um árduo garimpo destes flashes para que resulte em livro. Estou em dúvida, até por via de um outro livro à espreita da edição. Sei lá, se calhar mais paramento, mais andamento, mas só vou engolir a sugestão, depois de mastigá-la bem. Um ano a chegar ao fim é imagem de outro ano a chegar ao começo. Fascenino momento do que entra e sai, prevalecente de isto não é um cachimbo. Experimentem, sem alvoroço, fumá-lo!