Velho Ano Novo
E assim chegámos ao chamado “fim do Ano”, outra das nossas grandes festas — somos bons nisso de festas: esta celebra o nascer de um novo Ano. Tudo coisas do calendário, diga-se, para nos orientarmos, e organizarmos com algum sentido o tempo de vida que nos cabe. Somos seres do tempo: não o possuímos, mas ele nos tem e nos ampara, na sua interminável duração. É no corpo que somos e no espaço que habitamos, que melhor percebemos o fluir imparável do tempo, e onde o acontecer da nossa individualidade se conjuga com o devir da história enquanto labor da própria humanidade. A vida dura, o tempo perdura. As festas, as efemérides, as grandes celebrações: estes artifícios temporais que criamos, social e culturalmente, são luminares fundamentais para não soçobrarmos ao poder da finitude, e para determos a ilusão de ganhar tempo ao tempo, que sabemos ser, em nós, um “continuum” sem cortes, que vai do nascimento à morte, a sua e a nossa história indo de uma geração a outra, a que já foi e a que há-de vir, tempo imenso e tão curto, sustentando no seu mistério, apesar de tudo, o espanto e a alegria desta nossa “vita brevis”...
Amanhã é já o primeiro dia do Ano Novo, nascido à meia-noite em ponto sob um céu menos alto e distante, num cenário repetido e único, riscado de luz, música e estridências no ar, alegrias partilhadas, bons votos e, sobretudo, muita esperança. Essa é a virtude que marca a nossa experiência humana face ao presente, em permanente fuga para a diante: desejar mais e melhor, acreditar, confiar — o futuro como altar do tempo, aonde vai consumar-se a nossa esperança.
Que votos às zero horas, no irromper feérico do Ano Novo? Cada qual formula os seus desejos e bons propósitos, naturalmente. Mas esta será a noite que nos liga a todos numa comunidade de esperança. Paz e saúde, trabalho e alguma prosperidade — que mais poderemos desejar? Confiantes e resilientes, sabemos que não basta sonhar, mas insistimos em fazer desta celebração tão especial a hora do “pensamento mágico”, quando a magia da cor e da luz e dos abraços desta noite parece colocar-nos, por instantes, mais perto da realização de todas as promessas... Elas vêm já de trás, sonhadas e incumpridas, e são agora, uma vez mais, a velha herança do ano velho travestida em novos desafios face ao Ano que começa — que poderemos ainda desejar? Tanta coisa, por certo; e não vale a pena desejar demais — a frustração será maior. Mas, não é possível viver sem desejar, sem sonhar, sem esperar um milagre qualquer do tempo que, por um instante mais, nos empurra para diante — Ano Novo! —, pois desta vez é que vai ser, e vamos ficar mais perto de realizar aqueles “bons votos” que rasgam uma fresta de sentido e de felicidade no pano cinzento de um mundo demasiado humano e mortal. Sim, queremos essas coisas boas e belas que todos nos desejamos uns aos outros nas palavras quentes da meia-noite, mas sabemos como é precário o reduto individual: então, ousamos desejar mais do país político, que tão duramente condiciona a nossa vida, e queremos que o Ano Novo ajude a nascer uma nação menos mendicante, menos golpeada pela corrupção e pela injustiça, sem mais outonos covid e invernos demográficos, um país fiável e confiável, não apenas voltado para o mar e para o sol, mas para a vida verdadeira e para a alegria.
Será pedir muito? Talvez, mas esta vai ser a noite mágica do Velho Ano Novo!