França aposta em cimeira com África que recebeu com reticências há 25 anos
O programa da presidência francesa do Conselho da União Europeia, que se inicia em 01 de janeiro, inclui uma iniciativa sugerida por Portugal em 1996, a cimeira UE-África, que foi então "muito mal recebida" pela França.
A ideia foi lançada em Luanda pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, meses depois da primeira cimeira UE-ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático), em Banguecoque, como recordaram à Lusa os antigos embaixadores em Paris António Monteiro e Francisco Seixas da Costa.
"Nós queríamos que a Europa olhasse para a África de uma maneira diferente e lhe desse a importância que a África tem", disse António Monteiro.
A ideia, segundo Monteiro, "foi muito mal recebida por países como a França e o Reino Unido, que se mostraram reticentes, e a UE não a acolheu com muito entusiasmo", pelo que foi preciso esperar quatro anos.
O primeiro encontro entre líderes da União Europeia e da então Organização de Unidade Africana (OUA), antecessora da União Africana (UA), realizou-se no Cairo, em 2000, na segunda presidência portuguesa do Conselho da UE.
Numa obra publicada em 2012, o investigador britânico Alex Vines, do instituto Chatham House, de Londres, assinalou que a iniciativa portuguesa visou "tornar mais coerente a política de Bruxelas em relação a África".
Foi uma "demonstração de que Lisboa estava preparada para usar a sua influência nas instituições europeias para promover os interesses africanos", segundo o livro "The EU and Africa: From Eurafrique to Afro-Europa", do nigeriano Adekeye Adebajo e do britânico Kaye Whiteman.
Francisco Seixas da Costa, embaixador em Paris entre 2009 e 2013, contou que Portugal mudou o nome para cimeira UE-África para "incluir todos os países africanos" e não apenas os Estados-membros da OUA.
A segunda cimeira só aconteceu em 2007, desta vez em Lisboa e novamente quando Portugal presidia ao Conselho, e ficou marcada pela adoção da primeira estratégia conjunta UE-África.
Seguiram-se cimeiras em Tripoli (2010), Bruxelas (2014) e Abidjan (2017).
A sexta cimeira estava marcada para 2020, mas foi sendo adiada pela pandemia de covid-19, que impediu designadamente que ocorresse durante a presidência portuguesa do Conselho da UE no primeiro semestre deste ano.
Ao apresentar o programa da presidência francesa, o Presidente Emmanuel Macron considerou a relação UE-África como o "grande projeto político e geopolítico das próximas décadas".
Em 17 e 18 de fevereiro de 2022, Macron quer que as duas partes discutam um novo pacto económico e financeiro, uma agenda de educação, saúde e clima, uma parceria de segurança e uma política de migração seletiva.
"É um verdadeiro contrato de paz e prosperidade que desejamos pôr em prática, construir investimentos nas economias africanas e construir este futuro comum", disse então o Presidente da República francês.
Seixas da Costa considerou que a cimeira "também se prende com questões securitárias", porque o desenvolvimento permitirá "evitar a pressão migratória".
"Não vale a pena escondê-lo, o texto da presidência francesa fala em dar perspetivas à juventude dos países africanos... o sentido é dizer 'mantenham-se em casa, nós encontramos maneiras de se desenvolverem sem virem para a Europa'", disse, aludindo à política de migração seletiva defendida por Macron.
Por outro lado, disse ver nesta aposta de Macron o interesse da França em "sublinhar que é o grande interlocutor africano", em particular depois da saída do Reino Unido da UE.
"Não há mais nenhum país que tenha a capacidade de diálogo com a África que a França tem", afirmou o antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus.
António Monteiro disse esperar que a cimeira corresponda a uma "parceria igualitária" entre as duas partes, depois de Paris ter privilegiado relações com os países da sua área de influência em África, em detrimento de um relacionamento global.
"E não podemos esquecer que Portugal também tem um papel determinante, não só pela paternidade da ideia, mas pelo nosso interesse em que essa iniciativa se traduza numa alteração significativa daquilo que é o relacionamento UE-África", acrescentou o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros.