António Aragão, memórias de um património fotografado
E eu sou aquele menino de três anos que está ao colo do pai no canto da eira
Graças ao notável trabalho levado a cabo nos últimos anos pelas equipas do Arquivo e Biblioteca da Madeira – trabalho arquivístico, de conservação, digitalização e restauro do património fotográfico da Região – temos hoje a possibilidade de visitar exposições temporárias como a que está patente no Museu Vicente’s. Trata-se de uma variada mostra de fotografia dedicada a António Aragão, onde está presente o interesse do autor pela etnografia, um dos muitos campos de conhecimento a que se dedicou.
Ao percorrê-la, veio-me de imediato à memória a exposição que visitei no Museu Nacional de Etnologia, há cinco anos, e que tinha por título: “Inquéritos ao Território. Paisagem e Povoamento”. Nela se conferia especial destaque aos testemunhos da vasta produção científica da equipa de Jorge Dias, o proeminente académico que esteve na origem da fundação do Museu. Recordo ainda a vertigem que me acometeu ao ver as fotografias a preto e branco das décadas de 50 e 60, fotografias que me restituíram a imagem, dolorida e bela, das paisagens e práticas ancestrais do país “orgulhosamente só” e acabrunhado do tempo em que eu usava calções.
Cinco anos passados, numa mostra fotográfica de paisagens e gentes da Madeira nas décadas de 60 e 70, eis-me de novo confrontado com a mesma perturbadora vertigem, ao ver surgir diante dos meus olhos, com o poder evocativo que só a fotografia tem, o mundo que conheci na infância e que já não existe. O mundo do carro de bois, da parelha e do arado, dos moinhos de vento, dos sargaços colhidos na praia, das desfolhadas; o mundo que faria sentido para um homem nascido no Portugal romano de há mais de 2000 anos, mas que nenhum sentido faz para a minha filha; o mundo para sempre perdido que a geração a que pertenço terá sido a última a testemunhar.
Esta vertigem não deve, porém, confundir-se com saudosismo nem com o atavismo bacoco de alguns monárquicos. Ela não traduz senão a mágoa por tudo o que de culturalmente válido se extinguiu com a mecanização da agricultura: o canto que acompanhava a faina, os campos cultivados, as bouças e até o sabor de alguns frutos. Numa das minhas memórias mais remotas ouço mulheres cantando. Cantam em roda de um monte de massarocas cor de ouro, numa noite de Setembro, à luz incerta dos candeeiros de petróleo. Cantam a três ou a quatro vozes como era costume nas desfolhadas do Alto Minho. E eu sou aquele menino de três anos que está ao colo do pai no canto da eira e que, sem o saber, é testemunha de um mundo milenar que se extinguirá para sempre.