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Há Natais e natais

Esta época do ano inspira-me sentimentos e emoções agradáveis, positivas e de fraternidade. Transporta-me para memórias passadas vividas em família e comunidade, onde o espírito de partilha e gratidão era particularmente estimulado.

Não havia Festa sem que a minha avó pedisse para ajudar a distribuir as laranjas, a carne de porco, as batatas e o pão pelos vizinhos mais necessitados e os mais próximos. São memória também os cheiros que saíam da chaminé quando se cozia o pão, as broas e a carne do forno, que envolviam a aldeia. E as cantorias desencadeadas de forma espontânea quando se juntavam as pessoas, os jogos de tabuleiro e as cartas que reuniam amigos e família naqueles dias, os licores e as broas. Sinto-me grata por ter este Natal.

No entanto, sei que nem todos os Natais são assim. Tento colocar-me no lugar dos familiares das mais recentes vítimas de violência doméstica que perderam a vida em vésperas de Natal, no Funchal. Em qualquer época teria o mesmo impacto brutal, naturalmente, mas sendo esta associada à paz e ao amor, aquilo que aconteceu é a antítese de tudo isso.

Como lidar com um episódio de brutalidade desta natureza? Como entender e aceitar um ato tresloucado que nos retira entes queridos? Como interpretar a atuação das entidades de primeira linha, das autoridades de segurança, das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, sabendo que as pessoas envolvidas também se perguntarão o que falhou?

Se tinham sido identificados os sinais de alerta e fatores de riscos; se havia fatores de agravamento conhecidos, nomeadamente caraterísticas comportamentais do agressor, mas também fatores de proteção associados à criança e à mãe; se o caso estava sinalizado; se havia queixa formal, significa que alguma coisa falhou e não foi da parte das vítimas.

Será que se alerta a vítima para os maiores riscos que corre quando faz queixa e os meios que tem ao seu dispor para a sua proteção e dos menores à sua guarda? Será que se desvaloriza a queixa, o sofrimento e vulnerabilidade das pessoas expostas à agressão e ao agressor? Será que a prevenção não implica também atuar junto da pessoa, que se transformou em agressor, no sentido da alteração dos seus comportamentos?

Para aquela mulher e aquele menino já não há Natais. Também o Natal para estas famílias nunca mais será o mesmo. Os meus sinceros e profundos pêsames às pessoas que perderam os seus entes queridos em contextos e circunstâncias tão dolorosas.