Crónicas

Encarnação

Para os lados da Comissão Europeia terá havido controvérsia e ruidoso sururu com a ideia peregrina de “cancelar”: a palavra “Natal” deveria ser abolida dos discursos e substituída por, imagine-se, “período das festas”, expressão mais inclusiva...

A comissária Dalli apresentou no final de novembro as suas 30 páginas: implementar uma “União para a Igualdade” é um documento que contém verdadeiras “pérolas” de linguagem neutra (como, entre muitos exemplos, substituir o “Minhas senhoras e meus senhores” por “Caros colegas”), mas de que a parte relativa ao Natal — “evitar presumir que todos são cristãos” é uma das diretrizes — fez soar os alarmes, e o “paper” foi retirado para melhor redação: é um “work in progress”.

Não tenhamos dúvidas: esta é só uma pausa no trabalho dos fiscais do politicamente correto, enquanto ideologia que tudo envolve e que anseia reprimir (com a imensa ajuda dos burocratas de Bruxelas) o que não encaixa nos ditames da normalização em curso. Sim, é a pausa “natalícia”, mas os assanhados polícias do pensamento já voltam. As chamadas “raízes cristãs” da Europa são um não-assunto, e obviamente que a realidade não lhes interessa — o que sempre seria uma tentativa de (re)pensar a União à luz da sua história, identidade e cultura. Onde se aprende — dramáticos exemplos no século XX — que policiar o pensamento levou à repressão, à domesticação da linguagem, a praça pública tomada pelo poder de ocasião, que ali desenhava fantasmagorias de futuro nas chamas dos livros queimados... Sem pensamento e sem linguagem, sem capacidade de integrar — e não banir — a maravilhosa diversidade que fez a Europa, o que vemos são novas variantes de barbárie pós-moderna assomando à janela sem luz do poder global, onde o que chamam de “inclusão” acabará por ser, talvez e apenas, “o direito do mais forte à liberdade”.

Amanhã é Dia de Natal. A banalização consumista da data e a sua diluição na cultura secularista dominante, exigem que se contemple com nova ternura a cena fundadora do presépio. É aí que tudo entronca: o primordial do nascimento e da família, a humanidade no devir do tempo, e o mistério maior que é a Encarnação. O Natal é a grande festa do Deus-connosco, definitivamente próximo porque “encarnado”: não mais as “ideias” dos filósofos, não mais as “piedades” sem corpo, sem história humana, sem fraternidade, sem vida verdadeira. A Encarnação coloca à nossa frente, no total despojamento da cena inicial, o absoluto de um Deus feito “carne”: um dia, rasgando o pano da história, Ele deu à humanidade mesma do homem a possibilidade de cumprir-se. Aquele cenário de uma família precária e sem sucesso, que dava corpo, no silêncio da noite e para lá de todas as gramáticas bem-pensantes, ao dom maior de uma vida que era, afinal, a Vida — essa cena, celebrada e recriada há séculos por todas a gerações, contém ainda hoje para nós, cristãos ou não cristãos, um apelo fundador e uma exemplaridade maior, que só permanecem porque tocam muito fundo a nossa mesma humanidade. Está lá tudo o que precisamos para aprender a ser. Nada do artifício e do delicodoce em que embrulhamos as “Boas-Festas”, mas apenas isto: a Palavra é tão real que se faz “carne viva”! E essa Vida faz avançar a história: em cada dia o “natal” encarna o sentido, e a esperança de uma redenção. Emmanuel, Deus-connosco: o que a cena primordial do presépio continua a dizer é que o Homem não é um sonho vão.