Aprendemos alguma coisa?
É impressionante. A 27 de novembro de 2020, a pequena crónica desta rubrica tinha por título “Iremos aprender alguma coisa?”
Passou mais um ano: o longo braço do Covid não dá tréguas, o corona desmultiplica-se em variantes invernosas (do nosso descontentamento), de novo se perfilam perguntas sem resposta, nuvens sombrias no horizonte, e sem que o apregoado “dia da libertação” tenha sido pouco mais que propaganda estival. Agora, é o passado e o presente que se juntam na interrogação: “Aprendemos alguma coisa?”
Voltemos, então, há um ano atrás, citando o essencial:
“O que foi a experiência da ‘primeira vaga’? O medo tornou-se real, face à desestruturação do mundo e ao desabar dos rituais da vida que tínhamos por certa. Verificou-se a insuficiência das engenharias sociais que mantinham ‘as coisas’ a funcionar, a precariedade da existência tornou-se dramática pelo confronto com a morte (...) Misto de esperança e rebeldia, o ‘vai ficar tudo bem’ assomou às janelas e, perante pilhas de cadáveres amontoados no telejornal, arrojadas digressões elaboravam já as bases da ‘nova normalidade’ (...) Passado o terror do primeiro impacto e supondo-se aplacada a pandemia, logo voltaram as rotinas do antigamente, o verão ajudando à festa da vida, os políticos a cavalgarem a retoma a partir de reflexos bem entranhados no sistema (...) E antes que a gripe outonal fizesse a sua aparição, entrávamos já — mais tristes e mais pobres — nos confinamentos austeros da ‘segunda vaga’, o contágio em progressão acelerada, a ‘nova normalidade’ cada vez menos sonho e mais pesadelo, a estatística dos mortos a abrir os noticiários, a mendicidade a ganhar foros de cidadania, a raiva a desconfinar, a economia a agonizar, a cidade fantasma ao anoitecer, a vida a redesenhar-se em esgares de sobrevivência. Poucos rostos, muitas máscaras. Entre a velha e a nova normalidade que prolonga a antiga, o que aprendemos? Vimos mais de perto o medo e a intolerância, descobrimo-nos impreparados para a emergência (...) só pode nascer um verdadeiro ‘novo normal’ se isso não for apenas a reciclagem da velha normalidade — face ao outro, à sociedade e à natureza.”
Hoje, onde estamos?
Estamos quase na mesma: a incerteza é o que verdadeiramente temos por certo, acumulam-se interrogações, percebe-se agora que a suposta travessia rápida do túnel, com luz a tremeluzir ao fundo, era só uma premonição exagerada. Sim, sabemos mais e estamos mais adaptados ao que tem quer e que tem muita força; temos a vacina, menos mortos, mais esperança. E temos a 5.ª vaga e uma nova variante. A luta continua, mas há um “porém” no meio da sala: a tribo negacionista erguendo sem vergonha o falo egocêntrico do individualismo raivoso sob a capa dos “direitos” (o populismo, vírus mortal da democracia)!
Ah, é verdade: vem aí o “general inverno”, com o seu cortejo de impasses e de penas. Sim, a ciência, claro, nela acreditamos, e continua a ser a nossa melhor aliada. Apesar de tudo, pequenas-grandes vitórias! Lutamos melhor, mas a realidade é o que é: a finitude do homem e da vida é o verdadeiro incontornável — e morre-se muito no meio do “túnel” covidiano, a luzinha ali à frente, mas ainda longe demais. Resta a possibilidade de uma conclusão melancólica: se dermos a volta ao espelho triunfalista em que gostamos de (re)ver-nos, talvez consigamos ainda ouvir a voz de uma avozinha antiga: “Nã semes nada...”