A qual deles comprava um carro em segunda mão?
Metáfora campestre: a velha capoeira rural, terra batida, cercada por “arame de galinheiro”, galos, frangas e “poedeiras” a esgravatar minhocas enquanto a dona não lhes atirava uns punhados de milho em grão, ou restos de verduras para serem debicadas, ovos de fartura postos no aconchego do ninho, ou nalgum macio tufo de ervas: naquele falso bucolismo de aldeia antiga, uma “unidade de produção” que era toda uma sociologia da sobrevivência — dos residentes na capoeira, e dos que a construíam e alimentavam... As criancinhas digitais de hoje, que nunca viram estas coisas rudes e violentas, pensam que as galinhas nascem do frigorífico e “prontos”, até porque os pais delas, sensíveis devotos da religião animalista, são daqueles que “não gostam de matar galinhas/porém gostam de comer galinhas” (Sophia dixit). Mas, se uns e outros tivessem mais “escola da vida” e menos “eduquês”, saberiam desde sempre que em cada capoeira havia um poleiro e, no cimo, bem empoleirado e bem nutrido, arrogante da sua crista rutilante e dos seus enormes ferrões, estava o galo, o grande chefe: só um galo é que podia “tomar conta” do poleiro, só podia ser ele a mandar e, no meio de todo aquele cacarejar, era ele que “organizava” o galinheiro. Embora houvesse galos mais pequenos a tentarem a sua sorte, isso durava pouco, e as galinhas rapidamente percebiam quem era o chefe...
A crónica vai um pouco “surreal”, mas avancemos, ainda assim.
Sei que as coisas são muito mais complicadas que isso, mas simplificar é sempre um método que pode trazer bons resultados. Por exemplo: uma boa “linha de trabalho” para enfrentar a campanha eleitoral que se avizinha seria espalhar pelo país cartazes gigantescos (agora diz-se “outdoors”...) com as fotografias dos dois principais (e únicos) líderes da contenda, e legendá-los com a famosa pergunta que saltou para o debate que opôs Kennedy a Nixon, em 1960: “A qual destes homens comprava um carro em segunda mão?”
Na hora decisiva, que é, afinal, a do voto, subjaz à escolha uma constelação de fatores não ideológicos, que passam pelo emocional e que marcam a nossa subjetividade política. Uma gama bastante ampla: o histórico do personagem; o que dele se revela, ou se disfarça, no seu “habitus” comunicacional; o percurso, os tiques e o estilo, reiterados na construção do mito pessoal; o (nosso) condicionamento, que vem do preconceito ou da empatia; enfim, uma série de “razões sem razão”, que nos tolhem ou empurram para uma decisão — e que, globalmente, poderíamos resumir nas chamadas “questões de caráter”! Obviamente que a política e o destino de uma nação não passam apenas por aí. Mas, os últimos anos, meses e dias deste “consulado” têm evidenciado a relevância do “fator moral”, para que a vida política tenha alguma dignidade e não embrulhe as suas misérias em “razões de Estado”, que mais não são que calculismo e arrogância pacóvia destes “condottieri” da rosa-pátria — que, desde há muitos anos, votamos e aturamos, democraticamente.
Dois “galos” querem o poleiro, mas só um vai lá chegar. Portugal já não é um galinheiro: será, talvez, uma modernidade esfarrapada, onde se vendem muitos carros em segunda mão... Por agora, sabemos já alguma coisa destes dois “vendedores”.
Um, tem o hábito de dizer o que pensa (mas “a sinceridade é a mais desagradável das virtudes”, dizia Agustina), alcança vitórias “milagrosas” na hora final (Porto, duas vezes; autárquicas e internas, este ano) e a notícia da sua morte (política) tem sido, ao longo dos anos, repetidamente exagerada. As elites e os comentadores não o apreciam, tal como ele não alinha com aventais e salamaleques. Odeia “interesses obscuros”, e o histórico, nefando e nefasto, de um sistema que foi, ano após ano, robustecendo as socráticas raízes. Aparentemente, pretende o poleiro do poder apenas para “salvar a pátria” do desastre estatista de anos de extorsão e decrescimento, de mendicância engalanada em propaganda, e da charlatanice do politicamente correto que traz o país cada vez mais em “pele e osso”, a discutir bizantinices mas afundado em problemas estruturais, adiados e ocultados, que nenhuma bazuca irá obviamente salvar.
Quanto ao outro, que podemos dizer? Impossível resumir uma “carta de apresentação” que leva já seis anos da “vã glória de mandar” — pois essa é, na verdade, a espinha dorsal da sua ação, que, por ações e omissões, em tudo persegue a consolidação de uma enorme poder pessoal. Seis anos depois do “golpe” que tornou nosso Primeiro aquele que, na verdade, perdera as eleições, onde estamos? Antes, durante e depois da pandemia, a subsidiodependência impera e o raquitismo da economia, alastra. Então, que projetos, que rumo, que esperança? E, sobretudo, para onde vamos? Sabemo-lo astuto, cerebral e sibilino, dotes que, combinados com a famosa “paciência asiática”, fazem dele um “vendedor” praticamente imbatível. Mas convém, também aqui, não esquecer as “questões de caráter”: basta lembrar (apenas dois exemplos) as tão idiossincráticas reações “procrastinadoras” às enormes tragédias dos fogos, ou — sempre com o ministro dos “casos” — o calvário da conservação, em ministerial banho-maria, do “passageiro” que acabou — caso raro e nunca visto — “atropelado” pelo automóvel em que era conduzido! E, já agora, a recusa em integrar Francisco Assis na lista de futuros deputados, para o substituir por uma “apparatchik” em fim de linha (eventual presidenta da futura Assembleia da República...), diz tudo sobre o grande-chefe: não se sabe se perdoa, mas de certeza que nunca esquece.
Por mim, não preciso da “campanha” p’ra nada: já sei a quem nunca comprava um carro em segunda mão!