Tréguas de Natal
Não estamos em guerra armada, mas já se sente o Natal e a forte contradição entre o espírito de bondade e fraternidade
Um dos eventos que mais historicamente marcou a 1ª Guerra Mundial foi o da Trégua de Natal, uma série de armistícios informais ocorridos entre 24 e 26 de dezembro de 1914 por parte dos dois lados do conflito. Óbvio que, com o passar dos anos, a ocorrência tem vindo a ser algo exagerada, ao ponto de alguns erroneamente pensarem que toda a guerra foi suspensa durante os dias natalícios quando, na verdade, o que se relatou foi um conjunto significante, mas não generalizado, de cessar-fogos na Frente Ocidental que até trocas de prendas e futebol envolveu. Independentemente de exageros e de romantizações do acontecimento, o certo é que este se tornou um símbolo de pacifismo e de fraternidade no sentido em que também nas piores das condições o ser humano conseguiu neutralizar os seus sentimentos de fúria e partilhar na dor e na felicidade momentos de companheirismo com outros que dias antes eram seus inimigos.
Felizmente, não estamos em guerra armada, mas já se sente o Natal e a forte contradição entre o espírito de bondade e fraternidade típicos da época e aquele que tem sido o comportamento de rancor deste ano proveniente da situação pandémica da Covid, nomeadamente no que diz respeito à guerra declarada entre alguns vacinados e alguns não vacinados, sendo aqui de explicitar que com “não vacinados” refiro-me a pessoas que, mesmo tendo certos cuidados sanitários e reconhecendo a existência da pandemia, não a identificam como uma ameaça grave e negam as vacinas criadas para contrariar os efeitos da Covid.
Nesta nova guerra, que tem contido os seus efeitos à esfera virtual, os ataques entre as partes tendem a corresponder a um desejo único: o de que o outro lado sofra pela decisão que toma. Isto é de fácil observação em qualquer plataforma de notícias online internacional ou nacional quando, ao visitar uma secção de comentários sobre uma notícia associada à Covid-19 ou à vacinação, assistimos a comentários referindo o desejo de que os vacinados venham a ter filhos com malformações derivadas da toma da vacina ou que venham a desenvolver outro tipo de problemas como cancro. Semelhantemente, também nos é possível observar comentários fantasiando com a ideia de que aqueles que não se querem vacinar contra o coronavírus sejam expulsos do território nacional ou então que, de forma bastante mais obscura, percam algum ente querido para a doença. Pensamentos e argumentos de uma indiferença e de um infantilismo tremendos de ambos os lados, mas que, claramente, demonstram que o nosso espírito humano coletivo se encontra bastante pervertido ao ponto de que, para ter razão, alguns de nós estamos dispostos a desejar o pior possível àquele que deveria ser o nosso igual.
Neste momento, é dezembro e já se pensa no Natal. Mas, apesar disso e contrariamente aos soldados alemães que mataram os soldados ingleses e aos soldados ingleses que mataram os soldados alemães durante a 1ª Grande Guerra, agora não existirão tréguas, porque, por mais ridículo que pareça, na atualidade não “nos” é possível aceitar as dúvidas do semelhante mesmo que, no passado, tenhamos o exemplo daqueles que, embora por apenas três dias, conseguiram perdoar quem tinha matado os seus camaradas. Porque, afinal de contas, esses soldados não escolheram ser enviados para se esquartejarem uns aos outros durante a guerra, mas nesta quadra, na nossa pequena guerra de populismos, somos “nós” mesmos que desejamos a aniquilação do diferente, do que não concorda connosco.