Crónicas

8 de Dezembro

Naquele dia, em cima do terraço da cozinha, rimos muito, dissemos piadas e algumas daquelas alfinetadas que, de certa maneira, as famílias partilham

O dia em que a tia Conceição fez 75 anos foi dos últimos daquele tempo em que apanhar o 12 era o mesmo que embarcar numa viagem encosta acima até à infância. Lembro-me que, à mesa, estive eu, o meu irmão e a minha prima Ana. A tia quis os sobrinhos ao almoço, cobrou a presença pelo telefone e serviu-nos uma galinha de casa com canja de primeiro prato. O meu irmão e a minha prima Ana dividiram a garrafa de vinho e eu abusei do bolo numa tarde que acabou à conversa em cima do terraço da cozinha, a ver a nesga de mar ao fundo.

E, no fim, a minha tia deu-me o braço e foi até a paragem. Estava feliz, o sorriso não escondia como aquele almoço lhe enchera o dia, a ela que, ainda viajava sozinha para visitar os amigos no Porto e seria capaz de encontrar uma vaga de voluntário para o meu irmão numa missão em Moçambique. Nem eu, nem ela sabíamos que as nossas vidas estavam numa fronteira, quase a cruzar uma linha que nos ia levar em anos seguidos, sem nos dar folga, as pessoas com quem tínhamos vivido sempre.

E aquele 8 de Dezembro foi talvez o último dia em que vi o sorriso da minha prima Ana, aquela alegria que a fazia bonita. Tinha um feitio complexo, uma alma onde conviviam um lado solar e as sombras que, em certos momentos, a consumiam. Era 17 anos mais velha do que eu, sonhava ser médica, mas acabou como professora primária e, de certa maneira, a decisão nunca permitiu que fosse feliz. Só às vezes, como no dia em que a minha tia Conceição fez 75 anos, se podia ver como era de facto e, quando isso acontecia, emanava um calor aconchegante.

Naquele dia, em cima do terraço da cozinha, rimos muito, dissemos piadas e algumas daquelas alfinetadas que, de certa maneira, as famílias partilham. Fomos como na infância, quando a minha mãe ia ao médico e nos deixava por conta da Ana, que era nova e tinha aquele calor que nos sossegava. Por semelhanças de feitio, partilhava um elo forte com o meu irmão e naquele último almoço de família lembro-me de ter visto a mesma cumplicidade. Nenhum de nós estava em condições de prever o que seria as nossas vidas, mas naquele Dezembro, a poucas semanas do Natal fazíamos como sempre: ir a casa das tias almoçar.

A minha prima Ana foi-se uns meses depois, mas esta semana voltámos a fazer o caminho. Somos menos, muito menos. O meu primo Vítor veio de São Vicente, o meu irmão e eu fomos juntos e, por causa da chuva, estivemos no quarto da televisão, a ver livros das campanhas de turismo dos anos em que a minha tia Conceição era empregada de quartos no Hotel Girassol. Foi como voltar a casa, mas a uma casa onde há mais fantasmas, mais mortos do que vivos. Por agora somos apenas quatro daquela família que juntava a 8 de Dezembro e no dia de Natal no quarto da televisão da casa das tias. E, mesmo perdida numa cabeça afundada na demência, é a tia Conceição que nos faz voltar.

E foi ela que, este 8 de Dezembro, fez 89 anos. Há muito que deixou de ser a mulher que cobrava a presença ao almoço por telefone e perdeu a conta aos anos que tem. Na maior parte do tempo vive numa outra dimensão em que as irmãs, o pai e a mãe ainda estão vivos. É por eles que espera, é deles que sente falta, mas ainda sabe que nasceu no dia da Imaculada Conceição. E, por breves instantes, aquele momento em que a memória não a traiu, ficou muito feliz por saber que fazia anos.