A Covid mudou-nos?
Não gostamos da ideia de que a vida pode ser aleatória
Já levamos quase dois anos disto. Justifica-se um balanço. E a resposta é afirmativa, ainda que nem sempre positiva. Mudou-nos mesmo.
Começou por mudar a relação connosco.
Seria, aliás, perverso que atravessássemos um desastre de saúde pública, com alusões diárias à morte, sem sair dele com a sensação de que a vida é vulnerável e finita.
Porque a vida é vulnerável, cuidámos de nós. Procurámos protecção, conforto e consolo, e afinámos rotinas. Trocámos o sofá de sítio. Começámos a correr de manhã. Abrimos o vinho bom, que estava guardado para as visitas.
Porque a vida é finita, tratámos de viver com propósito. Orientados para aquilo que queremos, e não só para o que queremos evitar. Trabalhos, famílias, negócios, casas e relações, tudo esteve em cima da mesa, e nem tudo voltou para debaixo do tapete. Assim como a elite global dos nómadas digitais assentou arraiais na Ponta do Sol, também alguns emigrantes e desterrados continentais regressaram à ilha ou ao país. É o “pensa na tua vida”, como diz um amigo na legenda de fotografias do sol trepando rochedos e dissolvendo-se no mar alto, para persuasão dos últimos resistentes.
Neste processo de auto-descoberta, houve uma espécie de saída do armário de algumas sensibilidades que, se não eram patológicas, eram pelo menos anti-sociais. O bicho do buraco, o ratinho do campo e o hipocondríaco tiveram o seu momento, e lá andaram alinhados com o espírito do tempo.
Os ajustes, quando existiram fizeram-se sempre contra a vida moderna. Procura-se um abrandamento. Uma rotina mais verde, mais campestre, mais sossegada, até com menos socialização. As cidades, comunidades grandes, dinâmicas, orientadas para a produtividade e para o crescimento, tornaram-se antros babilónicos de suspeita.
Mas a Covid-19 também mudou a nossa relação com os outros.
Sub-repticiamente, como uma cobra sob o soalho, vai-se dizendo por aí: a Covid apareceu para nos ensinar alguma coisa.
Uma ideia quase mística, de alinhamento entre o mundo natural e o mundo espiritual, entre a doença do corpo e a doença da alma, entre a China e os chakras. O vírus é afinal uma espécie de arcanjo microscópico: o emissário da boa-nova, notificando a Humanidade para regressar a uma vida mais bucólica, comunal e – Nosso Senhor me perdoe – “plena”. Uma vida liberta das tensões e agressões que levaram a Mãe Natureza e o Direito Natural a meter o magnífico bedelho num pangolim ou numa proveta em Wuhan.
Este sentimento nasce de uma aversão.
Não gostamos da ideia de que a vida pode ser aleatória. É por isso que recorremos a espiritualismo, mapas astrais, e consumimos compulsivamente informação. É por isso que os pais são tão rígidos com os filhos. Gostamos de pensar que existe um propósito, um princípio, uma ordem. Consola-nos, dá uma sensação de estrutura, protege do susto que seria descobrir que a vida é um lançamento de dados, como no fundo sabemos que é.
É lícito que cada um acredite, ou até promova a patranha que quer. Não vem daí grande mal ao Mundo.
O problema é os Estados virem desenhando as suas políticas em torno desta sensibilidade. E agora crêem – talvez sinceramente – que uma civilização sob o signo da tecnologia e da vigilância segue lançada para se libertar do vício, da doença, do crime, e de demais resíduos desagradáveis da vida em comum. Devagarinho, vão-se formando sociedades onde é mais difícil viajar, sair, e até aparecer num escritório. Comunidades virtualmente poderosas, mas pessoalmente desligadas, com cidadãos menos dispostos ao convívio e à reunião. Uma vida de corte e costura, dominada por plataformas intermédias, onde a realidade, incluindo nós e os outros, surge modificada de acordo com as nossas especificações e preferências.
Disto, que parece exagero, há já alguns sinais.
No primeiro grande confinamento, as classes mais abastadas ficaram regaladamente em casa, enquanto lumpemproletários do Bangladesh lhes entregavam as mercearias e os medicamentos de bicicleta, vigiados e avaliados por aplicações. Para eles não houve confinamento. Não só não ficou tudo bem, como ficou quase tudo na mesma. A tendência acelera. Os mercados e os centros comerciais, que foram locais de encontro antes de serem locais de comércio, vão-se esvaziando. O retalho concentra-se, e as lojas evaporam-se, substituídas pela eficiência fria e mecânica do grande armazém.
Mark Zuckerberg, presidente do Facebook, anunciou que a empresa se prepara para desenvolver um território virtual chamado Meta, onde os utilizadores podem escolher o seu boneco e interagir com os demais. Uma experiência estritamente psicológica, desamarrada dos constrangimentos práticos e estéticos do mundo físico. O que sucede na semana em que Frances Haugan, a conhecida delatora do Facebook, pregou no deserto quanto aos efeitos do algoritmo e dos filtros das redes sociais na imagem corporal e saúde mental.
Nos antípodas, a Primeira-Ministra Neozelandesa Jacinta Arden resolve interditar a venda de tabaco a todos os nascidos depois de 2008. O Ocidente aplaude, ainda embriagado pela conversa dos custos da saúde dos outros. Como se o Sistema de Saúde não partisse de uma premissa de solidariedade e de comunhão de azares, incluindo o de cada um fazer com o corpo o que lhe der na gana.
Na Europa, a vacinação de crianças avança entre pareceres sigilosos, que mal ou bem dirão o que se suspeita: que os miúdos são vacinados para não sacudir os adultos. Uma decisão que pode ser científica quando orientada para protecção comunitária, mas leva o travo filosoficamente amargo de colocar crianças ao serviço dos mais velhos, inoculando-os contra uma doença que lhes é relativamente benigna. Um travo ainda mais problemático se os miúdos, que não decidem se levam ou não a vacina, acabarem discriminados por essa razão.
O certificado de vacinação deve vir para ficar. E este tipo de código de barras, com boletim de vacinas, passaporte, cartão do cidadão, finanças, segurança social, e registo criminal, será o salvo conduto de uma nova liberdade – condicional – de circulação.
Discretamente, o Ocidente tornou-se mais laico. O acesso a igrejas e locais de culto foi interdito e restringido como se se tratassem de recintos de espectáculo.
Por todo o lado vigora uma espécie de nostalgia com um passado mais agrário, simples, isolado, e uma certa glorificação da vida rural. Nas revistas lêem-se histórias de consultores a apanhar cerejas e políticos a produzir queijos, com o esquecimento complacente de que foi a economia de mercado e o bulício criativo das cidades que proporcionaram a comodidade, a conexão, e o acesso à cultura ao negócio com que hoje se vive no exílio e na província.
A pandemia vem montando uma existência mais desigual, presidida pelo conforto, lazer e alheamento, com um alcance virtual que aumenta à razão em que a liberdade física se reduz. Uma sociedade onde a disposição para o risco se substitui, definitivamente, pelo desejo de controlo.
É, de facto, um admirável Mundo. Mas não é novo.
Novo é achar que assim é que é.